EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ___ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE ___ DO ESTADO DO ___
Processo n.º ___
___ , já qualificada nos autos desta Ação de Usucapião que lhe move ___ , por seus advogados (procuração anexa), vem, respeitosamente, à presença de Voa Excelência, com fundamento nos artigos 335 e ssss. do Código de Processo Civil, e demais disposições legais de regência, apresentar sua CONTESTAÇÃO, a qual deverá culminar na improcedência dos pedidos autorais pelas razões de fato e de direito a seguir expostas.
I. SÍNTESE DA DEMANDA
Trata-se de Ação de Usucapião por meio da qual a Autora alega que adquiriu o veículo placas ___ , afirmando que deixou de pagar a última prestação (60ª), em virtude de não ter recebido o boleto para pagamento. Pugnou pela concessão de tutela de urgência para que a Ré entregue documento de propriedade de veículo – Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV).
Narra que o documento de propriedade do veículo deveria ter sido entregue em 2017, o que não ocorreu até o momento, ensejando o risco de apreensão do veículo.
Em razão dos fatos alegados, a Autora pleiteia tutela de urgência para entrega do CRLV, a qual foi negada em despacho inicial; bem como lhe seja reconhecida a propriedade do veículo, em função do cumprimento dos requisitos de usucapião de bem móvel.
II. DO INADIMPLEMENTO DA PARTE AUTORA
A Autora justifica seu inadimplemento em suposta falta de envio de boleto para pagamento da última parcela contratual. Contudo, tal fato não respalda nenhum de seus pleitos, seja a transferência de documento CRLV, a legitimação da posse, ou a aquisição de propriedade do bem por usucapião.
Mesmo que se admita a ausência de meios para pagamento, como a alegada ausência de envio de boleto ou informação de conta bancária para depósito, a quitação do débito deveria se dar por Ação de Consignação em Pagamento, depositando o valor devido em juízo, cessando os juros e riscos para si, nos termos do art. 540 [1] do CPC.
Como bem pontuou este MM. Juízo na decisão de fls. ___ , uma vez ajustado entre as partes que a última parcela corresponde a R$ ___ , não está a Ré obrigada a parcelar o valor em desconformidade com o contrato.
Assim, caso a Autora tivesse o intuito de quitar a dívida por receio de ter seu veículo apreendido por uma blitz, por certo consignaria o pagamento do saldo, requerendo o reconhecimento de quitação da dívida, bem como transferência de documento de porte obrigatório CRLV.
Neste ponto, conforme jurisprudência deste E. Tribunal de Justiça do Estado do Panará – TJPR, havendo recusa na emissão de boletos, é cabível a consignação em pagamento, vejamos:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO – EMISSÃO DE BOLETOS. ELEMENTOS ESSENCIAIS À PROPOSITURA DA AÇÃO EM CONSIGNAÇÃO CARACTERIZADOS. PAGAMENTO EM CONSIGNAÇÃO. COMPROVANTES DE DEPÓSITO EM CONTA JUDICIAL. PAGAMENTO INTEGRAL VERIFICADO. OBRIGAÇÃO QUITADA.RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (…)
A ação consignatória objetiva a quitação de débitos que o devedor não obtém êxito em pagar, motivado por alguma atitude do credor. O instituto do pagamento em consignação tem amparo nos artigos 334 e seguintes do Código Civil. Não há como exigir pagamento pontual se o mesmo depende da emissão de boletos que nunca chegaram ao conhecimento da parte devedora. (TJPR – 13ª C. Cível – XXXXX-10.2012.8.16.0001 – Curitiba – Rel.: Juiz Victor Martim Batschke – J. 20.04.2020).
Nesse sentido, de modo a corroborar com a jurisprudência deste E. Tribunal, destacamos também os ensinamentos de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery [2].
“Cabimento da consignatória. Em regra, a consignatória tem lugar nos casos de mora do credor ou dúvida quando à pessoa do credor. Diz-se em regra, porque as possibilidades de ação consignatório não se esgotam nessas duas situações – ela caberá sempre que o devedor precise defender seus legítimos e urgentes interesses. Isso é reforçado pelo faro de que o CPC 539 se utiliza da expressão “nos casos previstos em lei”, indicando que as possibilidades da consignatória não se esgotam no CPC” (Nery – Nery. Instituições DC, v. II, n. 76pp. 292-293).
O ajuizamento tão tardio da presente demanda revela apenas um objetivo da Autora: tornar-se proprietária de bem pelo qual não pagou o preço estipulado na aquisição.
Apesar da Autora alegar que quitou 59 (cinquenta e nove) parcelas, faltando apenas o adimplemento da última parcela, na realidade o contrato celebrado prevê a existência de 61 (sessenta e uma) parcelas, nos termos da Cláusula 6ª, presente às fls. 31.
Assim, ao interpretar as alegações da Autora frente ao contrato celebrado, a mesmo teria deixado de adimplir duas parcelas, sendo a penúltima no valor de R$ 795,39 (setecentos e noventa e cinco reais e trinta e nove centavos), e a última no valor de R$ 31.815,40 (trinta e um mil oitocentos e quinze reais e quarenta centavos).
A partir disto, o valor inadimplido, sem incidência de multa e juros, perfaz R$ 32.610,79 (trinta e dois mil, seiscentos e dez reais e setenta e nove centavos), cerca de 41% (quarenta e um por cento) do valor total do bem objeto do contrato, como acertadamente salientado por este MM. Juízo quando do indeferimento de tutela antecipada de urgência (fls. 86).
Sendo assim, na hipótese de realmente não ter sido emitido boleto para pagamento, a Autora deveria ter ajuizado a ação competente para adimplemento do contrato conforme compactuado, mas não buscar se favorecer da própria inércia, como pretende nesta demanda.
III. DA NÃO ENTREGA DO DOCUMENTO CRLV
Segundo a Cláusula ___ ª do Contrato celebrado entre as partes (fls. ___), a Ré só estará obrigada na transferência do documento de porte obrigatório – Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV), quando do adimplemento total do valor ajustado. E, consonante admitido pelo própria Autora na exordial, o contrato não foi adimplido.
A obrigação da Ré – de transferir o veículo – foi feita a termo, ou seja, condicionada a um evento futuro e certo, qual seja, o adimplemento do preço. Uma vez que a Autora não cumpriu as suas obrigações, não pode exigir que a Ré cumpra as suas, sendo esta hipótese clássica da exceção do contrato não cumprido.
Como bem reconheceu este MM. Juízo na r. decisão que negou a concessão da tutela antecipada, não há que se falar em adimplemento substancial da dívida que possa ensejar o direito de invocar o cumprimento contratual pela Autora, em função de pender pagamento superior à 41% (quarenta e um por certo) do débito assumido pela Autora, inexistindo obrigação da Ré em realizar a transferência do documento CRLV até que o valor seja pago.
IV. DA AUSÊNCIA DE REQUISITOS DA USUCAPIÃO
Apesar de a Autora alegar que possui direito à propriedade do veículo em virtude de justo título e boa-fé, enquadrando-se no art. 1.261 do Código Civil [3], na realidade não existem nos autos provas dos requisitos que ensejam a aplicação do instituto de usucapião de bem móvel.
Como acertadamente constatado pela r. decisão de fls. ___ , a Autora não adimpliu substancialmente o valor acordado. Assim, não há que se falar na existência de justo título, posto que descumpriu com a obrigação pactuada.
Também não se verifica que a posse da Autora sobre o veículo é envolta em boa-fé. Isto porque, além de ter inadimplido mais de 40% (quarenta por cento) do valor do bem, a Autora teria se aproveitado de suposta ausência de envio de boleto para permanecer inadimplente.
Diante de suposta ausência de meios de quitação, qualquer cidadão preocupado em não lesar seus credores faria uso do instituto da consignação em pagamento, depositando em juízo o valor que acredita devido, fato que, inclusive, o teria desincumbido dos encargos da moda, nos termos do art. 540 [4] do CPC.
Assim, as ações da Autora são incompatíveis com a sua alegada boa-fé, pois, frente à ausência de meios para pagamento, retém posse irregular do veículo por anos a fio, mesmo tendo conhecimento de fato que a impeça de ser proprietária do bem, com objetivo de pleitear em juízo usucapião do bem, almejando evidente enriquecimento ilícito.
Ademais, em relação ao usucapião de bem móvel previsto no art. 1.260 do CC, para além de justo título e boa-fé, é imprescindível a sua aplicação o instituto do animus domini, consubstanciado no animus de agir como se fosse dono, fato não provado pela Autora. Senão vejamos:
“Os requisitos para que o possuidor adquira o objeto neste caso são: a) animus domini, ou seja, a postura do que possui a coisa para agir como se dela fosse dono; o animus de agir como seu possuidor; b) posse pacífica e contínua, por três anos; c) possuir justo título. Neste caso, o pressuposto principal é a boa-fé do possuidor, seu desconhecimento de fato que lhe impeça de ser o possuidor da coisa que tem em seu poder (art. 1.260 do CC/2002).” ALMEIDA, G.L.F.D.V. D. Código Civil Comentado e Anotado. Pag. 693. Editora Manole, 2017.
Para fazer prova de animus domini, bastaria a Autora colacionar aos autos comprovante de pagamento de IPVA do veículo, o que certamente não é possível, pois tal quitação é realizada anualmente pela Ré, em ato concomitante ao pagamento do IPVA de todos seus veículos da região Sul do país, conforme comprovante ora juntado (doc. ___).
Portanto, resta caracterizado o animus domini desta Ré, em virtude de dar quitação anual ao imposto de propriedade do veículo. Tal fato aliado à ausência de justo título e à má-fé da Autora, que retém o bem sabendo de fato impeditivo de sua posse, confirma a posse ilegítima da Autora, bem como a improcedência do pleito de usucapião do bem.
Contudo, ainda que a posse sobre o veículo superasse o período de cinco anos, independendo de título ou boa-fé, nos termos dos art. 1.261 [5] do CC, ainda assim não seria possível o reconhecimento de propriedade por usucapião. Isto porque, conforme leciona a balizada doutrina sobre o instituto, na hipótese do art. 1.261, os demais requisitos do art. 1.260 se mantém, conservando a necessidade de animus domini sobre o bem.
“Prevê o Código que, caso o possuidor detenha objeto móvel, por cinco anos, independentemente de possuir ou não título, e de agir com boa ou má-fé, adquirirá a posse do objeto por meio da usucapião. Os demais requisitos do artigo anterior se mantêm (art. 1.261 do CC/2002).” ALMEIDA, G.L.F.D.V. D. Código Civil Comentado e Anotado. Pag. 695. Editora Manole, 2017.
Desse modo, incabível o reconhecimento de propriedade do bem por usucapião, seja na hipótese do art. 1.260 ou 1.261 do CC, por ausência de requisitos essenciais, consubstanciados na existência de justo título, do agir de acordo com a boa-fé, bem como na ausência de animus domini.
V. CONCLUSÃO E REQUERIMENTOS
Diante do exposto, resta demonstrado que os pedidos da Autora devem ser julgados totalmente improcedentes, vez que não guardam qualquer verossimilhança com os fatos pertinentes à contenda, sobretudo com as disposições do contrato de compra e venda celebrado, trazido aos autos pela própria Autora.
Ademais, requer seja confirmado o indeferimento de tutela de urgência para transmissão do documento CRLV, nos termos da decisão de fls. 86, em virtude da ausência de adimplemento substancial, vez que o contrato pende de quitação maior de 40% (quarenta por cento) do valor pactuado.
Em razão da Autora não ter trazido aos autos prova mínima do seu direito de usucapir o bem móvel, sobretudo no que toca a ausência de animus domini e outros requisitos para tanto, roga pela improcedência do pedido de reconhecimento da posse legítima e aquisição de propriedade do bem.
Uma vez que todas as provas necessárias para o julgamento da lide são documentais e já se encontram nos autos, protesta pelo julgamento antecipado do mérito. Contudo, caso este MM. Juízo julgue necessária dilação probatória, protesta, subsidiariamente, pela produção de todos os meios de provas admitidos em direito, especificamente prova oral e documental.
VI. DAS INTIMAÇÕES
Por fim, requer que todas as intimações sejam feitas em nome dos patronos ___ , OAB/SP ___ e ___ , OAB/ ___ , ainda que outros advogados venham a atuar no feito, sob pena de nulidade do ato de comunicação.
Termos em que pede deferimento
___ (Local), ___ (data)
___(Nome do Advogado)
OAB/ ___
[1] Art. 540. Requerer-se-á a consignação no lugar do pagamento, cessando para o devedor, à data do depósito, os juros e os riscos, salvo se a demanda for julgada improcedente.
[2] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado, 12ª ed. rev., ampl. atual. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2017, p. 840.
[3] Art. 1.260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade.
[4] Art. 540. Requerer-se-á a consignação no lugar do pagamento, cessando para o devedor, à data do depósito, os juros e os riscos, salvo se a demanda for julgada improcedente
[5] Art. 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.