A Defensora Pública do Estado de São Paulo Carmen de Moraes Barros publicou, no último dia 10, uma carta de despedida do órgão. Sua história como defensora, que começou em 1990, confunde-se com a própria história da instituição e a carta tem repercutido muito nas redes sociais desde então.
Confira a carta de despedida
Hoje é meu último dia de Defensoria Pública. É uma despedida. Deixo a Defensoria: grande paixão. Deixo de ser defensora pública. É dolorido. Amo meu trabalho, ao qual me dediquei com a obstinação dos inconformados.
A primeira vez que entrevistei um preso tremia tanto que mal conseguia escrever – tinham me falado que os presos conheciam mais seus direitos do que seus defensores. Uma bobagem. Naqueles idos de 1990, ninguém sabia nada de direitos de presos. Nada havia sobre execução penal no Brasil, além de único genérico (e festejado) manual e mais duas monografias se aventurando no tema.
Assumimos – defensores da Procuradoria de Assistência Judiciária Criminal – em 1996 a defesa nos processos da Vara das Execuções Criminais de Sāo Paulo (que concentrava todas as execuções do Estado na Capital) e efetivamente inauguramos a Execução Penal. Até então nunca ninguém tinha atuado seriamente em execução penal no Brasil. Aquilo era terra de ninguém. A injustiça graçava. Os presos eram indefesos. Não havia controle de nada. Os processos não tinham qualquer ordem lógica. Impossível calcular quantas pessoas soltamos naqueles primeiros anos por cálculos de pena errados, prescrições gritantes, penas vencidas, remições, comutações e absolvições não computadas, certidões não juntadas, alvarás não cumpridos! Praticamente morávamos no fórum para conseguir entender, pôr ordem e traduzir aquele caos de papéis que “inadvertidamente” mantinham presas centenas de pessoas que deveriam estar soltas! Ensinamos o “setor de cálculo” a “fazer cálculo”, a dividir o processo com ordem minimamente lógica. Vimos que a justiça não existia. Criamos teses. Fomos aos Tribunais. Passou a existir jurisprudência sobre o tema. Estudamos, escrevemos livros e dezenas de artigos.
Entre os que então assumiram a VEC em 1996, fomos quatro a optar pela Defensoria Pública, quando tardiamente criada no Estado de São Paulo em 2006. Nunca tive dúvida quanto à minha opção. Sou defensora.
Quantos horrores vimos no caminho.
A coordenação da Assistência Judiciária da Casa de Detenção (Carandiru) e seus oito mil presos, meninos de dezoito anos sendo mortos por dívida de crack, morrendo de aids no chão frio da enfermaria, ratazanas gigantes saindo das tocas no horário que eu ia embora carregando minha barriga de grávida até um dia antes do parto. A facção que “age dentro e fora dos presídios” que, jurava-se, não existia até deceparem meia dúzia de cabeças na primeira grande rebelião. Homens socados, amontoados uns sobre os outros em celas. Preso esquecido porque juntada certidão de óbito de homônimo ao seu processo. Parto algemada! RDD iligal. Presa verde por falta de sol.
Violência. Tortura. Morte. Esquecimento. Laudos psicossociais afirmando que o “preso não aproveitou a terapêutica penal”, juízes e promotores sem qualquer pudor repetindo essa vergonha, para “fundamentar” negar às presas e presos direitos. É uma hipocrisia insultante.
Para dar verdadeira dimensão ao absurdo teria que escrever “o livro dos horrores”. Poucos estômagos suportariam a leitura. Mas o descaso da (in)justiça é normal, é o dia a dia.
No caminho também tivemos conquistas.
A alegria da construção da Defensoria Pública. A chegada na primeira sala do Núcleo de Situação Carcerária com duas queridas estagiárias (uma voluntária), cada uma de nós carregando uma parte do meu computador pela rua até a sala vazia. Arrastando mesas e cadeiras para “fazer a sala do núcleo” e no dia seguinte o telefone já não parou de tocar. Um novo paradigma. Pensar soluções de forma ampla. Mudar Projetos de Lei. Tirar PL, votado e aprovado à traição na comissão de constituição e justiça, de votação final em plenário – que conquista, que realização! Estudar. Adquirir sempre novos conhecimentos. Propor novas políticas públicas.
As conquistas são sempre passíveis de retrocessos. A justiça não existe. Faço parte dessa farsa. É uma vida de constante frustração? A minha foi de constante indignação e revolta. Até por isso chegou a hora de parar. Perdi o respeito. Minhas manifestações são cada vez mais viscerais. A justiça nāo enxerga a realidade que vai além da gravata de seda e do salto alto. É enojante. As exceções apenas confirmam a regra: são excluídas por inadequação, inconveniência!
A justiça nāo estuda. Acredita que basta a pompa. Em meu último “habeas corpus” para o STJ bastava escrever que “contra a ignorância não existem argumentos”, pois o que causava o constrangimento ilegal eram o preconceito e a ignorância do desembargador relator do acórdão sobre o assunto!
Sou defensora. Meu sangue pulsa. Chorei com mães de coquinho que queriam saber porque não foram avisadas da morte do filho e onde foram enterrados para poder buscar o corpo. Māes querem velar por seus filhos vivos ou mortos. Briguei com essas mesmas māes de coquinho, que vieram andando até o fórum por não terem dinheiro para pagar ônibus, que juravam inocência do filho, pedindo-lhes objetividade porque a fila era muito grande e todos queriam ser atendidos. Mães querem velar por seus filhos inocentes ou culpados.
Mas meu sangue sempre pulsante. Nunca sangue de barata de quem não vê o sofrimento alheio, de quem acusa e julga papéis e não pessoas, de quem participa de um jogo hermético, repetitivo, predeterminado há séculos.
No Maranhāo, há muitos anos, numa cadeia em condições de aprisionamento indescritíveis, me disse um preso já bem velho, chorando, um tanto envergonhado: eu não mereço estar neste lugar…ninguém merece estar em um lugar como este.
Muita gente continua nos mesmos lugares e até em piores condições neste país.
Hoje deixo (dolorida) a Defensoria Pública, não serei mais defensora pública.
Continuo vivendo em meio a injustiças. Continuo não as suportando, reagindo, me indignando. Sou e serei sempre defensora.
Fonte: Justificando