Recusa de transfusão de sangue por motivos religiosos

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testemunhas de jeová
Créditos: vladm | iStock

A questão da negativa ou recusa de se submeter à transfusão de sangue por motivos religiosos, comumente apresentados pelos adeptos da religião cristã Testemunhas de Jeová, não é tema de fácil abordagem, sendo palco de acaloradas opiniões divergentes.

Fora do campo das ideias, na prática da advocacia junto às instituições de saúde, de um lado, nos deparamos com a angústia e preocupação dos médicos e hospitais, quer porque formados e votados para salvar vidas, quer porque tementes quanto às responsabilidades civis e criminais que possam advir. De outro, nos deparamos com angústia do paciente religioso, que se sente impotente e indignado ao ter sua autonomia de vontade tolhida e sua liberdade de crença violentada.

Por conta desse impasse e verdadeiro drama entre as partes envolvidas esse tema vem sendo judicializado, batendo às portas do STF que, em razão da inegável relevância, reconheceu sua repercussão geral, uma vez que a questão posta vai além dos interesses individuais das partes demandantes, potencialmente se identificando com os interesses de toda comunidade Testemunha de Jeová.[]

Diante disso, por óbvio, esta breve exposição não pretende esgotar o assunto e menos ainda ditar regras. Quanto muito se pretende uma reflexão: será que realmente estamos diante de cenário e solução eminentemente jurídicos ou estamos muito mais diante da  assunção de valores morais e inerentes ao ser humano?

Conforme pesquisa livre do porque as Testemunhas de Jeová não aceitam transfusão de sangue, salta aos olhos que não se trata de ignorância ou repúdio à ciência médica, até mesmo porque, por óbvio, o impasse se dá justamente nos hospitais, onde ali estão exatamente na busca de ajuda e tratamento com bases na ciência médica.

A toda evidência, apenas recusam a transfusão de sangue em razão de crença religiosa,  professando que os ensinamentos bíblicos, tanto no Velho como no Novo Testamento, os ordenariam a se abster de sangue (Gênesis 9:4; Levítico 17:10; Deuteronômio 12:23; Atos 15:28, 29).  Mais do que isso, segundo o texto Sagrado,  Deus revela o sangue como sendo a própria Vida  (Levítico 17:14), dádiva somente dada por Ele, de forma que a um só tempo negam a transfusão em obediência e em respeito a Deus.

Dentro dessa singela reflexão, deveria caber tão somente ao indivíduo escolher entre o tratamento que deseja se submeter e a realização ou não de transfusão de sangue, ainda que corra risco de morte. Neste aspecto em especial, o Estado e o Judiciário não deveriam intervir diante de legítima escolha existencial; o médico e as instituições hospitalares – obviamente após cumprirem o dever de informar e conscientizar sobre os riscos, alternativas existentes ou não existentes – deveriam se limitar a respeitar a vontade do paciente uma vez que a fé professada é inerente ao ser humano e expressa sua própria existência, a manifestação de sua personalidade e, consequentemente, de suas escolhas.

Sabido que no atual estado da técnica e da ciência médica, sobretudo nos procedimentos eletivos, o médico e o hospital bem podem e devem previamente planejar de forma acurada o procedimento cirúrgico e anestésico com adoção de técnicas alternativas que viabilizem a não realização de transfusão de sangue (ainda que com risco) e a utilização de substitutivos, bem podendo respeitar a autodeterminação do paciente.

Por outro lado, encontrando-se o médico diante de um dilema próprio, quer porque contraia seus ditames de consciência, quer porque não obstante não queira desrespeitar a liberdade de crença do paciente, sabe dos riscos, foi formado para salvar vidas e até mesmo porque não se sente confortável ou seguro suficiente para realizar o procedimento sem a segurança da transfusão de sangue, importante consignar que também merece igual respeito. Com efeito, não sendo caso de urgência ou emergência e que não tenha outro facultativo que possa prestar assistência, justo e legítimo que o médico possa apresentar objeção e se recusar a prestar o atendimento ou a realizar o procedimento médico.

Mas, no dia a dia, não obstante o paciente esteja consciente, orientado e em plena condição de decidir, também nos deparamos com a oposição de médicos e hospitais, que muitas vezes impõem a assinatura de termo de autorização para realização da transfusão ou se negam a realizar o procedimento, ainda que o paciente assine termo assumindo total responsabilidade que tem plena ciência e consciência dos riscos.  No judiciário, por sua vez, nos deparamos como decisões conflitantes, não sendo incomum a imposição à transfusão em caso de risco de morte.[[ii]]

Diante dessa realidade, onde não bastam os valores e crenças individuais e cujo respeito seria o suficiente, não resta outra alternativa senão socorrer de fundamentos jurídicos para fazer valer a liberdade de ser e crer.

E, no âmbito dos fundamentos jurídicos, como não dizer que oposição a esta escolha existencial do paciente afronta sua liberdade de crença, sua autonomia de vontade e, consequentemente, sua forma e ser e sua própria dignidade.  Nesse sentido, sem demérito a tantos outros juristas, merece destaque o posicionamento do ilustre constitucionalista Celso Ribeiro Bastos: “Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos.”[[iii]]

Consequência inevitável: ninguém pode ser constrangido a renunciar sua consciência, sua fé, seus princípios religiosos; ninguém pode ter violado o direito de livremente querer e decidir.

A rigor, não estamos propriamente diante de um conflito de direitos constitucionais, sobretudo o Direito Fundamental à vida (CF, art. 1º,III) versus as Garantias Fundamentais,  mais especificamente a liberdade de crença   (CF, art. 5º, VI).  Não obstante o direito à vida seja fundamental,  não se pode perder de vista que não há vida em sua plenitude se o indivíduo não for respeitado em suas liberdades individuais e  em sua crença religiosa,  haja vista que  estas  ganham forma e se materializam como expressão do ser e da sua própria dignidade, o que nos remete novamente a necessidade e dever de respeitar os  Princípios Constitucionais Fundamentais, sem os quais não podemos nos considerar um Estado de Direito.

Por fim, de passagem, uma vez que o presente tema apresenta outras importantes e polêmicas variáveis, em ambos os contextos, seja o moral seja o jurídico, estamos nos referindo ao paciente que no momento da escolha está consciente, orientado e decidindo sobre o seu tratamento, e não o de outrem.

Com efeito, esta reflexão não se aplica a autonomia da vontade ou escolha que pais religiosos querem fazer em nome de seus filhos, invocando sua representação legal.  Muitos se levantarão neste momento dizendo que esta fala contraria esta própria reflexão, haja vista que deveria bastar o respeito à liberdade de crença e as legítimas escolhas existenciais.   Em regra, deve.

Entretanto, deve ser respeitada exatamente no que diz respeito à própria escolha, à própria vida, à própria liberdade de crença, e não a do outro, a quem a vida pertence e igualmente merecer respeito à liberdade das próprias escolhas. Até que assim possa decidir, livre, consciente e perfeitamente orientado, cabe à sociedade salvaguardar este indivíduo para que ele próprio possa exercer seus direitos de personalidade, e não outrem.

Notas de fim

Apud Migalhas: www.migualhas.uol.com.br; RE 1.212.272.

[ii] “AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. \n A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do direito estatal de \salvar a pessoa dela própria\, quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas.\n AGRAVO PROVIDO” (https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/910055524/agravo-de-instrumento-ai-70032799041-rs?ref=juris-tabs).

“APELAÇÃO CÍVEL. PLANO DE SAÚDE. COBERTURA. PROCEDIMENTO REALIZADO POR MÉDICO NÃO CREDENCIADO. NEGATIVA DE COBERTURA PARA CIRURGIA DE HISTERECTOMIA TOTAL, SEM A POSSIBILIDADE DA REALIZAÇÃO DE TRANSFUSÃO DE SANGUE, SE NECESSÁRIO, DURANTE O PROCEDIMENTO. CRENÇA RELIGIOSA. DEVER DE INDENIZAR NÃO EVIDENCIADO. Inexiste abusividade na negativa de cobertura para realização de procedimento \sem sangue\, realizado por médico particular, não credenciado ao plano de saúde. Caso em que a paciente, por motivo de crença religiosa (Testemunha de Jeová), se nega a receber transfusão de sangue, mesmo caso necessário, contrariando a técnica tradicional. Os médicos conveniados não podem ser compelidos a atuar com técnica diversa, que não caracteriza especialização e com significativo aumento de risco à vida e integridade física do paciente. Ademais, não verificada situação de urgência ou emergência. Sentença mantida. Precedentes. RECURSO DESPROVIDO” (https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/905611123/apelacao-civel-ac-70050497692-rs?ref=serp).

Apelação Cível – Tutela de Urgência Auto Satisfativa – Transfusão de sangue – Testemunha de Jeová – Direitos Fundamentais – Sentença provida a fim da realização de transfusão de sangue contra a vontade expressa da Apelante – Possibilidade – Convicção religiosa que não pode prevalecer perante a vida, bem maior tutelado pela Constituição Federal – Sentença mantida – Recurso não provido” (https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/887997063/apelacao-civel-ac-10032433420188260347-sp-1003243-3420188260347/inteiro-teor-887997111?ref=juris-tabs).

“PLANO DE SAÚDE. Ação de ressarcimento de despesas hospitalares c.c. indenização por dano moral fundada em negativa de custeio de procedimento cirúrgico. Preliminar de ilegitimidade recursal alegada em contrarrazões afastada. Mérito. Recusa, pelo plano de saúde, de reembolso de despesas hospitalares e honorários médicos. Ausência de ilegalidade na conduta da ré. Autorização para a realização de cirurgia que não se realizou ante a crença religiosa da autora. Recusa da paciente em receber transfusão de sangue por ser Testemunha de Jeová. Procedimento realizado fora da rede credenciada. Religiosidade que deve ser respeitada, sem, contudo, a transferência do ônus ao plano de saúde. Inexistência de dano moral. Ação improcedente. Sentença reformada. RECURSO DA RÉ PROVIDO, DESPROVIDO O DA AUTORA” (https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/675191175/apelacao-apl-10225456420178260224-sp-1022545-6420178260224?ref=serp

[iii] BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes, de seus familiares, ou dependentes, às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas, p. 19. Parecer Jurídico, São Paulo, 23 de novembro de 2000; apud Consultor Jurídico (https://www.conjur.com.br/2009-jun-20/testemunhas-jeova-direito-negar-transfusao-sangue).

Eduardo Andery
Eduardo Andery
Advogado, sócio do Granito, Coppi, Boneli e Andery Advogados (GCBA Advogados Associados). Pós-graduado em Direito Médico pela Escola Paulista de Direito (EPD) e em Direito Contratual pelo Centro de Extensão Universitária - CEU Law School.

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