Função social dos contratos e a revisão contratual por fato superveniente

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Dos glosadores extrai-se a seguinte célebre expressão: “contractua qui habem tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebis sic stantibus” consagra a teoria da imprevisão que é usual na doutrina e jurisprudências brasileiras. Conforme concluiu Bartolomeo de Brescia em glosa[1] do decreto Graciano: “Ergo semper subintelligeitur haec condictio, si res in eodem statu mansen” (In: OSTI, Giuseppe. Clausola Rebus sic Standibus in Novíssimo Digesto Italiano, p. 354: Se as coisas se mantiverem no mesmo estado, o pacto se mantém).

A história demonstra a técnica que procura conciliar o pactuado entre as partes com o surgimento de acontecimentos imprevisíveis conforme remonta a Antiguidade Clássica, mas ganhou notoriedade, devido ao direito canônico com o surgimento da implícita cláusula rebus sic stantibus nos contratos de trato sucessivo, ganhando status de norma jurídica nos códigos dos setecentos, tal como o Código da Prússia em 1794 e, a partir do Código Napoleônico de 1804, que influenciou todas as codificações posteriores, incluindo o Código Civil brasileiro de 1916 passou a sofrer profunda rejeição diante a desejada certeza, completude e perpetuidade, que preponderante, se atribuiu ao fenômeno da codificação, bem como mitigando o dogma da autonomia da vontade e, o rígido princípio do pacta sunt servanda.

Presente desde a Antiguidade na prática de contrato de execução continuada, tendo grande utilização no mundo prático, principalmente em socorro dos prejudicados por uma alteração substancial da realidade em que se encontravam quando da celebração do contrato em situação de desigualdade contratual grave, por fato superveniente, imprevisível para as partes que justifiquem a revisão o reajustamento das prestações ou até mesmo a resolução do ato jurídico.

A teoria da imprevisão recebeu um novo dimensionamento, pela doutrina francesa[2] um pouco diferente de sua origem que remonta a cláusula rebus sic stantibus.

Conclui-se que, para a aplicação dessa teoria, há a necessidade de comprovação dessas alterações da realidade ao lado da ocorrência de um fato imprevisível, sem as quais, não há como invoca-la. A teoria da imprevisão só aplicada em duas categorias de contratos: os de execução continuada (ou de trato sucessivo) e os de execução diferida.

A inexistência de regras jurídicas que possibilitassem a mitigação do princípio pacta sunt servanda de forma generalizada, somente na Idade Média, com o advento do Direito Canônico, culminando com a elaboração da cláusula rebus sic stantibus.

O marco inicial do referido conceito, refutando qualquer influência exercida pelos romanos e pelo Código Hammurabi e, dentre aqueles que defendem a origem canônica do instituto destacam-se Álvaro Henrique Teixeira de Almeida[3], Arnoldo Medeiros da Fonseca[4] e Júlio Alberto Diaz[5].

Apesar de ser incontestável que o Direito Canônico fora o berço da cláusula rebus sic stantibus, também não restam dúvidas quanto aos ensinamentos trazidos pelos romanos para a evolução do tema. Assim, assiste razão à doutrina que defende a origem romana e babilônica do preceito.

Enfim, a era medieval fora marcada pela forte influência do Cristianismo, decorrendo daí a existência de uma moral cristão sobre todos os atos jurídicos praticados à época. E, tal influência manifestou-se numa maior preocupação de canonistas acerca da noção de justiça contratual, de equivalência de prestações, caracterizando-se como um período voltado para lado social em detrimento do individual. Logo, não causa surpresa a evolução sofrida pelo instituto na Idade Média.

Os primeiros a discorrerem sobre a mutabilidade do pactuado foram Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino que já preconizava em seus sermões que o descumprimento de uma promessa em virtude de fatores extraordinários posteriores àquela não acarretaria a infidelidade do promitente. Este, tomando por base nos escritos de Sêneca, assim anunciou em sua obra Summa Theologica:

    “Aquêle [sic] que prometeu alguma coisa pode contudo [sic] ser escusado por duas razões: Primeiro, se prometeu o que é manifestamente ilícito, porque, prometendo, pecou. Por outro lado, mudando o propósito, age bem. Segundo, se mudaram as condições das pessoas e dos negócios. Pois como diz Sêneca no livro “De Beneficiis”, para que o homem esteja obrigado ao que prometeu requer-se que todas [sic] as circunstâncias permaneçam inalteradas.  Por outro lado, não mentiu quando prometeu. Pois prometeu oque tinha em mente, subentendidas as devidas condições. Nem é infiel não cumprindo o que prometeu porque as mesmas condições não subsistem”. (In: PIERI, David Lacerda. A teoria da Imprevisão no Direito Civil Brasileiro. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/9667/1/DLPieri.pdf. Acesso em 16.7.2020).

O contrato de execução diferida é aquele em que o pagamento ou o cumprimento ocorre uma vez só no futuro. O contrato de execução continuada ou de trato sucessivo é aquele em que o pagamento ou o cumprimento de sentença ocorre de forma periódica no aspecto temporal.

Nelson Nery Júnior lembra que no Direito Alemão, a teoria da imprevisão é denominada de teoria da pressuposição. De qualquer forma, alguns doutrinadores diferenciam as duas teorias.

Ensina Otávio Luiz Rodrigues Junior apud Flávio Tartuce (2007,p.332) que: “A teoria da pressuposição de Bernard Windscheid é baseada na premissa de que, se alguém manifesta sua vontade em um contrato, o faz sob um determinado conjunto de pressuposições que, se mantidas, conservam na vontade, e, se alteradas exoneram o contratante”.

O pressuposto é, portanto, de que o contrato deva ser cumprido enquanto se conservam imutáveis as condições externas; havendo alterações, modifica-se a execução, aplicando-se a regra rebus sic stantibus restabelecendo-se o status quo ante.

Humberto Theodoro Júnior, novamente, socorrendo-se do magistério Henri De Page, afirmou que “a teoria da imprevisão tende a fazer admitir, como princípio geral, que a parte lesada por um contrato pode ser exonerada de suas obrigações quando fatos extraordinários escapam de toda previsão, no momento em que aquele que formou, e que alteraram tão profundamente a economia sendo certo que esta parta não teria consentido em assumir o agravamento dos encargos, que dele resultam se pudessem ter previsto que provocaram esta exacerbação (Henri De Page, Traité élementaire de droit civil belge, Tomo II, E. Bruylant Bruxelles, 3.ed., 1964, p. 559). O contrato e seus princípios cit. Pág. 116).

A aplicação da teoria da imprevisão está presente em nossa jurisprudência, apesar da restrição de hipóteses práticas consideradas como imprevistas pelos novos tribunais.

Na realidade, a amplitude restrita de fatos imprevisíveis diminui as possibilidades da revisão contratual com a cláusula rebus sic stantibus. Importante salientar a divergência doutrinária existente no Brasil quanto à teoria adotada pela atual codificação privada.

Alguns doutrinadores entendem que o Código Civil de 2002 adotou a teoria da imprevisão cuja origem está na cláusula rebus sic stantibus. É o caso de Maria Helena Diniz, Álvaro Villaça Azevedo, Renan Lotufo e Paulo Luiz Netto Lôbo.

Flávio Tartuce filia-se pelo menos inicialmente a essa corrente, já que predomina a análise do fato imprevisível a possibilitar a revisão contratual por fato superveniente. Logo se percebe que há certo rigor para se aplicar essa teoria, conforme anota Maria Helena Diniz, in verbis: “Assim, a onerosidade excessiva oriunda de evento extraordinário e imprevisível, que dificulta extremamente o adimplemento da obrigação de uma das partes, é motivo de resolução contratual, por se considerar subentendida a cláusula rebus sic stantibus, que corresponde à fórmula de que nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório ficará subordinado, a todo tempo, ao estado de fato vigente à época de sua estipulação. A parte lesada no contrato por esses acontecimentos supervenientes, extraordinários e imprevisíveis, que alteraram profundamente a economia contratual, desequilibrando as prestações recíprocas, poderá desligar-se de sua obrigação, pedindo a rescisão do contrato ou o reajustamento das prestações recíprocas, por estar na iminência de se tornar inadimplente, tendo em vista a dificuldade de cumprir o seu dever, ingressando em juízo no curso da produção dos efeitos dos contratos, pois se este já foi executado não haverá intervenção judicial”.

O órgão judicante deverá, para lhe dar ganho de causa, apurar rigorosamente a ocorrência dos seguintes requisitos: a) vigência de um contrato comutativo de execução continuada; b) a alteração radical das condições econômicas no momento da execução do contrato, em confronto com as do benefício exagerado para o outro; c) imprevisibilidade e extraordinariedade daquela modificação, pois é necessário que as partes quando celebraram o contrato, não possam ter previstos esse evento anormal, isto é, que está fora do curso habitual das coisas. (In: DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Teoria Geral das obrigações contratuais e extracontratuais. 19ª ed., v.3. p. 162).

No entanto, é igualmente forte a doutrina pela qual o Código Civil brasileiro de 2002 adotou a teoria da onerosidade excessiva com a inspiração no artigo 1.467 do Código Civil Italiano de 1942. Esse é o entendimento de Judith Martins-Costa, Laura Coradini Frantz e Paulo R. Roque Khouri, e Antônio Junqueira de Azevedo tendo esse último doutrinador manifestado sua opinião nos debates havidos na III Jornada de Direito Civil.

A questão sobre a teoria adotada pelo vigente Código Civil quanto à revisão dos contratos por fato superveniente é por demais controvertida sendo que a III Jornada de Direito Civil em 2004 e na IV Jornada de Direito Civil (2006), deixaram claro que a codificação adotou a teoria da imprevisão.

De fato, o nosso artigo 478 do vigente codex, é ao menos parcialmente, equivalente ao art. 1.467 do Código Civil italiano de 1942. Entretanto, o artigo 317 do Código Civil não tem correspondente na codificação italiana. Eis a fundamental distinção.

Afirme-se que o Código Civil brasileiro traz a revisão contratual por fato superveniente diante da imprevisibilidade somada a uma onerosidade excessiva. Portanto, há uma conciliação parcial entre as duas correntes doutrinárias anteriormente citadas.

Analisando os requisitos dos artigos 317 e 478 do Código Civil vigente podemos concluir que: a revisão não será possível quando o contrato assumir a forma unilateral ou gratuita.

O contrato deve ser bilateral ou sinalagmático, estando presentes o caráter de onerosidade e o interesse patrimonial, de acordo com a ordem natural das coisas.

Outros requisitos, o contrato deve assumir a forma comutativa, tendo as partes total ciência quanto às prestações que envolvem a avença.  A revisão por imprevisibilidade e onerosidade excessiva não poderá ocorrer caso o contrato assuma a forma aleatória, aquele em que o fator risco (álea) é inerente ao negócio, conforme os artigos 458 a 461 do Código Civil vigente.

No entanto, como é sabido, os contratos aleatórios têm uma parte comutativa, predeterminada ou preconhecida, como é caso do prêmio pago no contrato de seguro.

Assim sendo, é possível rever tais contratos justamente nessa parte comutativa, diante da onerosidade excessiva. E, os tribunais brasileiros têm entendido dessa forma para revisar os contratos de plano de saúde.

Somente é possível revisar os contratos de execução diferida e de execução periódica ou continuada, também chamados de contratos de trato sucessivo.

Convém relembrar que os contratos de execução diferida são aqueles em que o pagamento ou cumprimento ocorre uma só vez no futuro. Exemplificando com uma compra e venda mediante pagamento com cheque pré-datado uma realidade bem comum no mercado brasileiro.

A revisão contratual poderá ser aplicada nos contratos de trato sucessivo, onde o pagamento ou cumprimento obrigacional ocorre repetidamente no tempo e de forma sucessiva. É o caso do contrato de consórcio, a locação ou uma compra e venda financiada em que o pagamento é feito em várias parcelas.

Não é possível rever o contrato instantâneo ou de execução imediata, já aperfeiçoado, é interessante apontar que a jurisprudência, no entanto, tem também admitido a revisão desses negócios.

Vale a pena citar a Súmula 296 do STJ pela qual a renegociação de contrato bancário ou a confissão de dívida não afasta a possibilidade de revisão de contratos já extintos principalmente quando houver abusividades.

Outro requisito para que haja a revisão contratual por fato imprevisto seja possível, deve estar presente à onerosidade excessiva, onde ocorre a quebra do sinalagma obrigacional, situação desfavorável a uma das partes da avença, normalmente a parte mais vulnerável ou mais fraca, que assumiu o compromisso obrigacional.

Deve-se entender por onerosidade que serve para fundamentar a revisão contratual ou resolução do contrato, e que não necessita de prova, de que uma dos contratantes auferiu vantagens, bastante a prova do prejuízo e do desequilíbrio negocial.

Esse é o entendimento que foi confirmado pela IV Jornada de Direito Civil, com a aprovação do Enunciado 365 CJF/STJ: “A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena”. Referência Legislativa: Norma: Código Civil 2002 – Lei n. 10.406/2002 ART: 478.

O fato imprevisibilidade ainda sucinta debates e dúvidas. Para a revisão por imprevisibilidade não há necessidade dessa alteração da realidade. Mas, havendo alterações das circunstâncias da contratação, modifica-se a execução, tentando restabelecer-se a situação anterior.

Pode-se afirmar que nos casos em que a onerosidade excessiva provém da álea normal do contrato e não de acontecimento imprevisível, bem como nos contratos aleatórios, em regra, torna-se incabível a revisão contratual.

Em sentido parcial, fora aprovado o Enunciado 366 da IV Jornada, in litteris: “O fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação”. Referência Legislativa: Norma: Código Civil 2002 – Lei n. 10.406/2002; ART: 478.

Afinal, o regime de onerosidade excessiva superveniente não pode ser acionado diante de simples oscilação econômica seja para mais ou para menos do valor da prestação.

Lembre-se, porém, que mesmo uma pequena oscilação econômica poderá acarretar uma extrema onerosidade para uma das partes, principalmente a que seja mais vulnerável.

Uma questão controvertida se apresenta qual o dispositivo que ampara a revisão contratual por fato superveniente do Código Civil vigente? Alguns apontam que a revisão contratual fora recepcionada pelo artigo 478, mas, refuta Tartuce (2007) apontando o artigo 317 do CC que é voltado para resolução do contrato por onerosidade excessiva, provocada por acontecimentos imprevisíveis e extraordinários, enquanto aquela não atinge o fato jurídico, a fonte da obrigação, inclusive o negócio jurídico, mas apenas a prestação com o fito de sua revisão ou correção.

Deve-se ainda atentar para o teor do Enunciado 176 da III Jornada de Direito Civil in litteris: “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o artigo 478 CC deverá sempre que possível à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.” Tem-se a valorização da conservação contratual.

Apesar de entendimento pacífico e da aceitação da revisão contratual por fato superveniente, infelizmente poucos casos vêm sendo enquadrados como imprevisíveis por nossos tribunais. Uma realidade que se esperava que mudasse com a entrada em vigor do Código Civil de 2002.

A nossa melhor jurisprudência sempre considerou o fato imprevisto tendo como parâmetro o mercado, não a parte contratante. Em termos econômicos, na sociedade pós-moderna e globalizada, nada é imprevisto, pois tudo se tornou potencialmente previsível. Não seriam imprevisíveis, por exemplo, a escala inflacionária, o aumento do dólar ou o desemprego, não sendo possível a revisão contratual motivada por tais ocorrências.

Tal interpretação torna inviável a revisão contratual a partir do Código Civil retirando a efetividade da função social dos contratos. Assim, a vigente codificação continua trazendo a expressão “fatos imprevisíveis” (art. 317) e “fatos imprevisíveis e extraordinários” do artigo 478 para motivar a revisão contratual.

Conclui Flávio Tartuce que o regime geral do Código Civil é intencionalmente mais exigente do que o Código de Defesa do Consumidor. Pois para este, basta-se aqueles fatores que pressupõe um outro: a fraqueza relativa do consumidor perante o fornecedor. Por isso, permite a revisão do contrato, logo que a prestação se torne excessivamente onerosa.

E, analisando as decisões do Judiciário, percebe-se uma série de equívocos cometidos em vários tribunais estaduais excluindo a aplicação da revisão judicial por fato superveniente em situações em que esta deveria ocorrer.

Álvaro Villaça Azevedo defendeu posicionamento no sentido de lesão enorme em vez da teoria da imprevisão. Afinal, Tartuce, julga que a cláusula rebus sic stantibus pode ser admitida sem a moderna teoria da imprevisão que reduz a sua intensidade, possibilitando sua aplicação somente em situações futuras imprevisíveis.  Para Tartuce, a lesão enorme ocorre quando existe mero desequilíbrio contratual desde que presentes graves modificações no contrato, pressupondo, assim, a álea extraordinária (Álvaro Villaça Azevedo, O novo Código Civil brasileiro, p. 28).

Tartuce aponta que a tese que requer a imprevisibilidade tende a sucumbir. Pois o C.C. de 2002 adotou explicitamente a função social dos contratos no artigo 421 e no CDC que também adotou tal princípio implicitamente ex vi artigo 6º, V da Lei 8.078/1990.

Se o Código Consumerista que adotou a função social do contrato como princípio abraçou também a teoria da base objetiva do negócio (revisão por simples onerosidade excessiva, dispensando a prova de imprevisibilidade), como poderia o Código Civil de 2002, que traz o mesmo regramento básico contratual, adotar uma forma de revisão que exige a imprevisibilidade?

Esse contrassenso é também combatido na doutrina por Fernando Noronha e Nelson Nery Jr. A doutrina da base do negócio jurídico está fundada na cláusula geral de boa-fé objetiva (BGB, § 242, art. 422 CC). Constituem-se como evolução e aperfeiçoamento das antigas teorias da pressuposição (Windscheid) e da imprevisão (oriunda do direito romano- cláusula rebus sic stantibus) ambas insuficientes para solucionar adequadamente os problemas advindos do desequilíbrio contratual e da quebra da proporcionalidade existente entre as prestações.

Base do negócio jurídico (Gerschaftsgrundlage) é a representação de uma das partes, no momento da conclusão do negócio jurídico, conhecida em sua totalidade e não obstaculizada pela outra parte, ou a manifestação jurisprudencial de mesmo o CDC adotou a teoria da imprevisão, o que constituiria um sério entrave à revisão judicial dos contratos de consumo.

Cabe ressaltar a ementa do STJ em que foi aplicada a teoria da imprevisão ao contrato de consumo (leasing) quando na verdade deveria ter sido adotada a teoria da equidade contratual ou da base objetiva, já que na ótica do CDC não se discute a onerosidade se deu por fato imprevisível ou não. (Vide Agravo Regimental desprovido, STJ, Acórdão AGA 430393/RJ, Data da decisão 14.5.2002, Terceira Turma STJ, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 05.8.2002, p.339).

É verdade que a constitucionalização do direito civil vem a contrariar a ordem natural das coisas no direito privado e toda tendência de socialização do Direito Civil surgida com a valoração de direitos existenciais relativos à pessoa humana, o que reforça a possibilidade da revisão judicial dos contratos sendo interessante a lição de Emílio Betti para quem “tal como os direitos objetivos, também os poderes da autonomia, efetivamente, não devem ser exercidos em oposição com a função social a que são destinados: o instrumento da autonomia privada, colocado à disposição dos indivíduos, não deve ser desviado do seu destino”.

Além disso, percebe-se no atual Código Civil uma antinomia existente entre o artigo 317 e o artigo 480 que tem a seguinte redação, in litteris: “Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterada o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”.

Dentro desse contexto, enquanto que o artigo 317 C.C. menciona a necessidade de prova dos motivos imprevisíveis para que surja o direito à revisão contratual o artigo 480 do mesmo diploma legal não faz a mesma exigência, ficando a dúvida sobre qual o dispositivo deve ser aplicado pelo magistrado no caso concreto.

Defendendo a adoção do princípio da função social dos contratos, que tem eficácia interna entre as partes contratantes poder-se-ia dizer que o último dispositivo é que deve ser aplicado.

Porém, a exemplo do artigo 478 C.C., o artigo 480 do Código Civil vigente está inserido no capítulo que trata da extinção do contrato e, não de sua revisão, conforme já apontado, o que afasta o doutrinador Flávio Tartuce da possibilidade de se adotar o segundo dispositivo de forma direta e que sirva para fundamentar a revisão contratual por fato superveniente.

O artigo 478 menciona ainda a necessidade de existência de eventos imprevisíveis e extraordinários, razão pela qual, se o juiz fizer a opção pela revisão, mesmo tendo sido solicitada, a resolução do negócio jurídico pela parte, será imprescindível provar que o fato superveniente é imprevisível e está presente no caso concreto.

A revisão contratual prevista no artigo 480 somente poderá ser aplicada quando presentes os requisitos apontados pelo artigo 478 C.C.

Não obstante isso, o artigo 480 do Código Civil vigente somente incidirá naqueles casos em que apesar de a parte requerer inicialmente a extinção contratual, os interessados, posteriormente manifestam a sua intenção de revisão, aplicando-se o princípio da conservação negocial e, evitando-se a onerosidade excessiva.

Apesar da dificuldade de se auferir os fatos imprevisíveis na prática, dois enunciados do Conselho da Justiça Federal, aprovados nas Jornadas de Direito Civil parecem solucionar a análise do que sejam os fatos imprevisíveis.

O primeiro destes é o Enunciado 17 aprovado na I Jornada de Direito Civil, pelo qual a “interpretação da expressão motivos imprevisíveis, constante do artigo 317 C.C., deve abarcar tantas causas de desproporção não previsíveis, mas de resultados previsíveis”.

A tendência de interpretação do fato imprevisível tendo como parâmetro as suas consequências para a parte contratante e não o mercado, a sua origem tão somente.

Em outras palavras, levam-se em conta, os critérios subjetivos, relacionados com as partes negociais, o que é mais justo. Isso seria uma espécie mantendo o equilíbrio do negócio, a sua base estrutural.

Nesse sentido, o Enunciado 175 aplicável ao artigo 478 do atual Código Civil e que tem a seguinte redação: “A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no artigo 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz”.

Mais uma vez, levam-se em conta as consequências do fato imprevisível na interpretação da sua ocorrência, a partir de uma análise subjetiva e pessoa do fenômeno.

Essa valorização do aspecto subjetivo está muito próxima da teoria da base substantiva cujo desenvolvimento é atribuído a Oertmann. É importante salientar que, na doutrina pátria, vários autores criticam essa análise subjetiva, a partir de interesses pessoais do contratante.

Laura Coradini Ferraz formulando crítica para quem o desemprego não pode ser tido como um motivo imprevisível a fundamentar a revisão judicial do contrato por fato superveniente (Bases dogmáticas para interpretação dos artigos 317 e 478 C.C.). In: Questões controvertidas ao novo Código Civil. Coord. Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo. São Paulo: Método, 2004, v. 4, p. 157.

O referido autor, por razões óbvias, discorda desse posicionamento sendo a análise do aspecto subjetivo um dos mecanismos de efetivação do princípio da função social dos contratos, mormente feito às avessas.

A crítica também pode ser encontrada na obra coletiva coordenada por Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, nos seguintes temos:

“Assim é que diante dos princípios constitucionais que regem a atividade econômica privada e definem o conteúdo axiológico dos princípios fundamentais do regime contratual informando especialmente a função social do contrato e a cláusula geral de boa-fé objetiva”. (Vide comentários aos artigos 421 e 422 do Código Civil) há que se afastarem as interpretações que acabam por fazer renascer as diversas doutrinas subjetivistas da teoria da imprevisão (Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, volume I, p. 611).

A derradeira crítica parece confundir a função social do contrato prevista no artigo 421 do CC com a função econômica do contrato, o que não pode ser feito.

Na realidade, esperava-se que nossos tribunais dessem interpretação técnica idêntica ao que ensina Enzo Roppo, para quem justifica a resolução do contrato, por exemplo, a imprevista desvalorização da moeda.

Como isso não vem ocorrendo atualmente, a saída é justamente a orientação de interpretação subjetiva. Dessa forma, para se afastar maiores riscos ao meio social e aos vulneráveis da relação contratual, deve-se entender como motivos imprevisíveis os fatos supervenientes e alheios à vontade das partes e à atuação culposa.

Sobrevindo a desproporção em casos tais, poderá ocorrer a revisão do negócio jurídico. Lembremos que o Código Civil de 2002 em seus artigos 423 e 424 traz regras visando proteger o aderente, geralmente a parte economicamente mais fraca do contrato de adesão (ou contrato standard) segundo o conceito de Enzo Roppo a quem são impostos de ditames negociais.

Novamente, a incoerência se fez presente no Código Civil brasileiro de 2002 já que o aderente que tem proteção ampliada pela codificação cível, com a previsão de preceitos já previstos no CDC, somente terá direito de revisão de contrato se provar a existência de fatos imprevisíveis.

Isso contraria o princípio da função social dos contratos, razão pela qual entendemos que um dispositivo diferente do que prevê o artigo 317 deveria ser inserido no Código para ser aplicável aos contratos de adesão.

Talvez um artigo que determinasse a aplicação aos contratos de adesão do previsto no artigo 6º, V do CDC, viesse em boa hora. É pertinente ainda comentar que a ausência de mora em algumas das situações, não vem sendo mais apontada, como requisito crucial para se pleitear a revisão contratual por fato superveniente, conforme a jurisprudência de nossos tribunais.

Isso principalmente nas hipóteses em que houver cobrança de valores abusivos por parte do credor. E, nesse sentido, prevê o Enunciado 354 também da IV Jornada do Direito Civil que “A cobrança e encargos e parcelas indevidas ou abusivas impede a caracterização da mora do devedor”.

O entendimento é justo diante das abusividades cometidas habitualmente na prática do mercado brasileiro. Anota com pertinência e lucidez o juiz paulista Fábio Henrique Podestá apud Tartuce (2007) que in litteris: “Temos, portanto, que fechar as portas do devedor para revisão judicial pela alegação contrária de que está em mora, não atende a qualquer rigor legal, especialmente porque o que está em jogo é a justiça contratual vinculada à necessária comutatividade das prestações”. (Notas sobre a revisão do contrato. Direito Civil. Direito Patrimonial. Direito existencial. Estudos em homenagem à Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Coord. Flávio Tartuce e Ricardo de Carvalho. São Paulo: Método, 2006, p. 343).

Referências:

TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contratos do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. (Coleção Prof. Rubens Limongi França, v.2.) São Paulo: Método, 2007.

TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor. Direito Material e Processual. Volume Único. 7ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018.

Notas de fim:

[1] Coube à Bartolo, jurista pós-glosador do século XIV, interpretando um fragmento do Digesto, a construção da fórmula que se tornaria tão famosa e utilizada até hoje: contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur. O mestre Arnoldo Medeiros da Fonseca, em sua obra intitulada “Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão”, assim traduziu a citada formulação: “Nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório entende-se subordinado à continuação daquele estado de fato vigente ao tempo da estipulação”.

[2] O exemplo mais famoso, em França, foi a Lei Faillot, de 21 de janeiro de 1918, que criou regras excepcionais para a aplicação da teoria da imprevisão no Direito francês. O ressurgimento da doutrina revisionista dos contratos, negada pelo Código Napoleônico e, por necessidades econômicas posteriores à guerra, resgatada nessa lei que autorizou os juízes e tribunais franceses a resolverem ou revisarem os contratos que tivessem sido celebrados antes da guerra (a Primeira Grande Guerra Mundial). In: De Mello. Fabiano Cotta. A reformulação da ideia da imprevisão após covid-19: Uma nova lei faillot? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/324216/a-reformulacao-da-ideia-da-imprevisao-apos-o-covid-19-uma-nova-lei-faillot  Acesso em 16.07.2020).

[3] ALMEIDA, Álvaro Henrique Teixeira de. Apontamentos sobre a teoria da imprevisão. Advocacia Dinâmica: Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro: COAD, out. 1999, p. 11-14;

[4] FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão, 3. ed, rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 198.

[5] DÍAZ, Julio Alberto. A teoria da imprevisão no novo Código Civil brasileiro. Revista de Direito Privado, São Paulo: RT. v. 20, out./dez. 2004, p. 201.

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