PEC 50/2023 é constitucional? Discussão correlata e apontamentos

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PEC 50/2023 é constitucional? Discussão correlata e apontamentos | Juristas
Leonardo Sarmento – Professor constitucionalista

Estamos nos dedicando em nossos últimos textos à tratar de um fenômeno comum ao Estado Democrático de Direito, que assenta sua organização politico-constitucional de competências elevando à um grau prioritário de tutela o sistema de freios e contrapesos que possibilita o controle do poder pelo próprio poder, quando um poder teria sua autonomia para o exercício de suas funções constitucionais precípuas, mas sob o controle, supervisão das demais forças de poder, evitando dessa forma o abuso. De antemão lembramos, que esse controle do poder pelo poder, check in balance, se espraia pelo texto constitucional nos episódios que o legislador constituinte entendeu como necessário, sempre procurando manter a coerência do sistema constitucional.

Conforme temos aduzido em caixa alta vivemos o momento de maior tensão de nossa história democrática recente, quando o razoável, o ponderado, a medida mais dialógica parecem haver dessublimado ante aos extremismos de uma política hostil e pecadora que tomou conta da sociedade e do poder, dissuadida de valores e princípios de toda sorte E em prejuízo das saudáveis deliberações democráticas.

Hoje, as esferas do Judiciário (leia-se STF) e do Legislativo parecem travar batalhas às escâncaras, de viés fortemente político-ideológico, pelo protagonismo no poder. O princípio da harmonia, princípio constitucional fundamental com espeque no art. 2° da CRFB, parece estar sem normatividade para o atual momento da nossa recente história, de nossa juvenil democracia.

No tocante à PEC 50 em específico, proposta que vislumbramos pontuar considerações, pretende alterar o art. 49, da Constituição de 1988, para atribuir ao Congresso Nacional a competência de “suspender” decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que extrapole os limites constitucionais. Acrescentaria ainda o inciso XIX ao art. 49, da CRFB/88. O dispositivo permitiria ao Congresso Nacional editar Decreto Legislativo, desde que aprovado por três quintos dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e requerido por um terço dos seus membros, para sustar decisão proferida pelo STF transitada em julgado, que extrapole os limites constitucionais. Além disso, acrescentaria um parágrafo único ao art. 49, da CRFB/88. Esse dispositivo, por sua vez, atribuiria ao Presidente do Congresso Nacional a competência para promulgar o Decreto Legislativo a que se refere o inciso XIX e comunicar ao STF a edição do referido ato normativo com vigência imediata.

A justificativa da Proposta denota seu caráter e marca em negrito nossas preambulares considerações, pois vejam: trazem à baila o sinal de alerta de tentativa de burla do princípio constitucional da Separação dos Poderes, alega-se que “nenhum poder é soberano sobre o outro”, razão pela qual, “uma vez elaborada e aprovadas as leis pelo legislativo”, caberia “ao judiciário a sublime função de julgar e assegurar o seu pleno cumprimento”, reduzindo o papel do Judiciário e alargando o do Legislativo.

Ainda, que uma decisão judicial “controversa” seria contrária à “própria Constituição” e, nesse caso, à “ampla maioria dos representantes do povo”, colocando em risco o Estado Democrático de Direito. Por isso, seria preciso haver “recurso capaz de rever a decisão de afronta a vontade da ampla maioria do povo devidamente representado no Congresso Nacional”. Desse mister trataremos ao longo.

Quanto à constitucionalidade das alterações pretendidas pela PEC n. 50/23, aduz sua justificativa, que a medida seria “absolutamente constitucional, pois não fere nenhuma cláusula pétrea, uma vez que não retira nenhuma prerrogativa do STF, mas tão somente acrescenta nas prerrogativas do Congresso Nacional”.

De antemão, importante notar, que o art. 93, IX da CRFB exige fundamentação rigorosa das decisões judiciais, e quando o Legislativo pretender alterar o texto constitucional, Diploma que se irradia, que performa como fundamento de validade de toda ordem jurídica que lhe deve compatibilidade, deve obedecer com mesmo estrito rigor que se infere do mandamento constitucional, como se exige das decisões judiciais, afinal falamos de uma proposta legislativa que pretende alterar o texto constitucional, e a presente PEC 50/2023, e não apenas ela, que fique claro, tem ignorado referida exigência dispondo suas justificativas como quem escreve em guardanapos sentados à mesa de um bar. Uma justificação que vai um pouco além de uma página, além de inconstitucional pela forma, é um desrespeito ao processo democrático de formação de leis (em sentido amplo), que precisa revelar-se claro e exauriente para sua exegese, tramitação e publicidade.

A PEC 50 afronta de maneira muito evidente o art. 60, parágrafo 4° da CRFB, em especial os incisos III (separação de poderes) e IV (direitos e garantias individuais). Como consabido, o parágrafo 4° do artigo referido trata das cláusulas pétreas. Neste elenco do parágrafo 4°, não se exige a abolição de qualquer preceito via emenda constitucional, mas basta movimento tendente a abolir para receber o bloqueio constitucional.

Assim, vejam o que nos diz o art. 5°, XXXVI da Constituição de 1988: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Nos interessa em particular a coisa julgada que é o status da decisão judicial da qual não caiba mais recursos, desta feita, indiscutível e imutável. É um direito fundamental do cidadão não apenas por constar no elenco do art. 5°, mas porque a coisa julgada fornece estabilidade às relações sociais e consequentemente a segurança jurídica de que toda demanda, contenda, questão, terá um fim (em tese).

Nosso sistema constitucional conferiu a Supremo Tribunal Federal a prerrogativa da última palavra para as questões de apelo constitucional que cheguem à Casa, por isso ao contrário do que apregoa a PEC, a última palavra sobre os limites constitucionais pertence ao Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição.

De fato, nosso poder constituinte originário nos “presenteou” com uma Constituição profundamente extensa (analítica, minuciosa), dogmática, social, normativa, que buscou acobertar e dar a maior segurança jurídica possível às questões entendidas como de maior relevância para sociedade, conferindo à Constituição de 1988 intensa normatividade, há o que se denomina de hiper-constitucionalização da vida contemporânea. Nossa Carta Maior não se ateve aos aspectos dos direitos e garantias fundamentais e organização do Estado, mas tratou de temáticas político-sociais em muitos dos seus artigos, o que possibilita que diversas questões de ordem política abarcadas pelas funções Executiva e Legislativa de Poder tivessem sua esteira de vida condicionadas ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, como seu guardião constitucional de ultima ratio.

Importante ainda suscitar, que inobstante o princípio majoritário seja a mola propulsora das Casas Políticas, em especial do Legislativo onde vencerá a tese majoritária, da maioria, há a necessidade de se olhar para as minorias e seus direitos fundamentais, que não podem restar violados. O Supremo Tribunal Federal cumpre portanto como medida fundamental de freios e contrapesos seu papel contramajoritário de tutela de minorias, e é justamente esse papel que não raras vezes é o fundamento maior das tensões entre as funções de Poder. As minorias hoje com representantes no Congresso, via de regra, não conseguem sustentar seus pleitos fundamentais e acabam esmagadas pelas maiorias das Casas Congressuais. Quando as questões são levadas ao Supremo por tocarem em emblemáticas constitucionais, a “Corte Constitucional” deve pronunciar-se no estrito cumprimento da vontade do constitucional, quando muitas vezes irá fazer prevalecer a vontade das minorias que a Constituição tutela. Não teremos assim uma decisão antidemocrática por contrariar a vontade da maioria do Legislativo, mas uma decisão democrática por atender aos reclames constitucionais das minorias, funcionando como Tribunal contramajoritário nessas suas legítimas intervenções, que confere poder normativo à Constituição.

Não há cabimento no atual modelo constitucional da existência de revisões do Congresso de decisões judiciais como pretendeu a PEC. Sabemos porém, que o Legislativo não se vincula às decisões do STF e pode propor sim, medida legislativa que se contraponha, que se entendida inconstitucional, a partir de um STF provocado, poderá declará-la inconstitucional.

Conforme já abordamos em artigos e em nossos livros, não obstante o Judiciário na voz do Supremo possua a derradeira palavra nas questões constitucionais, deve atuar nos limites constitucionais da Separação dos Poderes evitando o “ativismo judicial” em questões que possam ser autocontidas sem prejuízo ao princípio Democrático. Deve evitar o Judiciário atuar de modo proativo, expansivo, criativo, indo através da interpretação de conceitos constitucionais abertos para além do que pretendeu o poder constituinte, em especial o originário, mas de certa forma também o legislador derivado, ao ocupar um espaço político que lhe compete. Um Judiciário equilibrado, menos ativista como foi em dados momentos, em determinados julgados, evitaria o chamado efeito backfash, que nada mais é que um contra-ataque político ao ativismo judicial. Em regra, o efeito backfash ocorre após uma decisão judicial que o Legislativo entenda que o Judiciário extrapolou suas funções constitucionais adentrando na seara precipuamente política, e como “ato de força” propõe medida legislativa, uma produção normativa que acaba por traduzir sua insurgência ao assentado pelo Judiciário. Nascem tensionamentos e desarmonias.

Há no presente momento a necessidade de um diálogo institucional para se alcançar um maior equilíbrio democrático, a harmonia constitucional possível entre as funções de poder, não propriamente as trocas de favores institucionais do estilo “uma mão Lava a outra”, mas efetivamente de boa-fé, no interesse do desenvolvimento dos princípios Republicano e Democrático. Por todo exposto vislumbramos sim a pecha de inconstitucionalidade da PEC 50/2023.

Seguindo a linha do que apresentamos durante todo artigo, sucedeu-se no Congresso Nacional a rejeição ao veto Presidencial. Desta sorte, a lei que trata do marco temporal que revelou-se posterior a decisão do Supremo que desacolheu a tese do marco temporal restará promulgada. Em 2024, por certo, conforme firmamos supra, o Supremo Tribunal Federal deverá ser novamente provocado à enfrentar a questão à partir da lei que passará a vigorar, e conforme expusemos desacreditamos que o STF modifique sua posição conquistada por ampla maioria pela inconstitucionalidade do marco temporal, o que irá corroborar nosso ponto de vista sobre o prazo de validade da nova legislação. A cada vez mais declarada desarmonia entre o Supremo Tribunal Federal e o Legistativo promete novos capítulos. Estamos democratizando apontamentos sobre a PEC 50/2023 em novo artigo, quando reforçamos com novos argumentos o embate sobre o protagonismo das funcões de Poder da nossa República.


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