Nesta quarta-feira (7), o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 na qual se discute a possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. O julgamento será retomado em conjunto com o Recurso Extraordinário (RE) 670422, com repercussão geral reconhecida.
A ação foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República a fim de que haja interpretação conforme a Constituição Federal ao artigo 58, da Lei 6.015/73, norma que disciplina os registros de pessoas naturais. Segundo esse dispositivo, “o prenome será definido, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios” (redação dada pela Lei 9.708/98).
O relator da ADI, ministro Marco Aurélio, fez a leitura do relatório e, em seguida, falaram os “amigos da Corte” [amici curiae]. “Resta saber se, para ter-se a mudança do sexo – a mudança do nome já é admitida – no setor competente da identidade e também no registro, é necessário ou não ter-se mutilação”, observou o ministro Marco Aurélio.
PGR
Na sessão de hoje, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, reafirmou que a ação envolve o direito de transexuais, se desejarem, à substituição do prenome e de sexo no registro civil sem a obrigatoriedade de cirurgia de transgenitalização. Segundo ele, no caso discute-se se há um direito fundamental à identidade de gênero com base nos princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), da igualdade (artigo 5º, caput), da vedação de discriminações odiosas (artigo 3º, inciso IV), da liberdade (artigo 5º, caput) e da privacidade (artigo 5º, inciso X), todos da Constituição Federal.
A linha do Ministério Público Federal é no sentido de afirmar que esse direito é fundamental e reconhecê-lo como “imanente à personalidade”. Para o procurador-geral, se uma das finalidades da norma é proteger o indivíduo contra humilhações, constrangimentos, discriminações em razão do uso de um nome, essa mesma finalidade deve alcançar a possibilidade de troca de prenome e de sexo no registro civil.
“Impor uma pessoa à manutenção de um nome em descompasso com a sua identidade, é a um só tempo atentatório à dignidade e comprometedor de sua interlocução com terceiros, nos espaços públicos e privados”, ressaltou. Ainda, conforme o procurador-geral, “para que se respeite a necessária congruência entre a real identidade da pessoa e os respectivos dados no registro civil, por obviedade palmar, não há que se exigir a realização de cirurgia de transgenitalismo”, tendo em vista o fato de que não é a cirurgia que concede ao indivíduo a condição de transexual.
Por fim, Rodrigo Janot avaliou que não se pode exigir do indivíduo “uma verdadeira mutilação física” para assegurar direito constitucional básico assegurado a todo cidadão e avaliou que a transgenitalização não deve ser um pressuposto para o exercício dos direitos da personalidade.
Amici curiae
Em nome do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Maria Berenice Dias afirmou que as pessoas “trans” vivem uma terrível realidade, uma vez que além do preconceito da sociedade, há uma grande demora para a realização de procedimentos cirúrgicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo ela, “se essas pessoas são vítimas da omissão perversa do legislador, precisam encontrar a resposta na Justiça”. “Não podem ser duplamente punidas simplesmente por não quererem ou não fazerem a cirurgia e a Justiça não pode impor a ninguém que faça uma cirurgia para poder ter esses direitos à personalidade e à dignidade que lhe são assegurados constitucionalmente”, completou.
Pelo Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero Políticas e Direitos (LIDIS) e pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), Wallace Corbo ressaltou que gênero não é sinônimo de genitália. Segundo ele, já em 2017 dezenas de pessoas transexuais, transgêneros e travestis foram espancadas, estupradas e cruelmente mortas no Brasil e para essas pessoas o documento de identidade não é garantia de segurança nem de paz. “Quando têm que mostrar um documento com nome e gênero que não correspondem com aquele com o qual se identificam, elas são humilhadas, discriminadas em todo ambiente que ocupem”, disse.
Wallace Corbo destacou que o documento de identidade é um ato de violência. “É a lembrança constante de que o Estado não as reconhece como elas são, de que o Estado não as trata com igual consideração e respeito”, afirmou, ao acrescentar que em Portugal, na Colômbia e na Irlanda essa alteração de documento é administrativa e não dependente de nenhuma cirurgia.
Advogada transexual
Primeira advogada transexual da região sul do país, Gisele Alessandra Schmidt e Silva representou o Grupo Dignidade – Pela Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros. De acordo com ela, a orientação sexual e a identidade de gênero de uma pessoa não são, em si próprias, doenças médicas a serem tratadas, curadas ou eliminadas. A advogada destacou que, como experiência interna, o gênero da pessoa não pode depender de demonstração exaustiva de certo padrão de feminilidade ou de masculinidade para que se conceda a ratificação de registro civil à pessoas transexuais.
“A imensa maioria de transvestis e transexuais não teve as oportunidades que eu tive e estão à margem de qualquer tutela, morrendo apedrejadas e a pauladas em total violação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, disse, ao ressaltar que possui documentação civil que reflete seu nome verdadeiro e sua identidade de gênero. “Não somos doentes, não sofremos de transtornos de identidade sexual, sofre a sociedade de preconceitos historicamente arraigados contra nós e nossos corpos tidos como objetos”, afirmou.
Fonte: Supremo Tribunal Federal