Pas de nullité sans grief

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Pas de nullité sans grief | Juristas
Prof.Dr. Marcelo Henrique

A expressão que intitula o presente artigo remonta ao Direito Francês, mais precisamente ao art. 114 do Código de Processo Civil da França. A tradução direta já desvenda grande parte da norma: “não há nulidade sem prejuízo”. Entretanto, a hermenêutica jurídica determina que este princípio seja melhor elaborado, principalmente no que diz respeito aos conceitos de “nulidade” e “prejuízo”.

Sempre é salutar relembrar que a instrumentalização material das demandas por meio dos autos trazidos pelas partes, que é o que chamamos de processo, bem como seu impulso, tem natureza pública. Ainda que o objeto material em discussão entre as partes seja exclusivamente de natureza privada, o fluxo processual sempre tem natureza pública, até mesmo porque é presidido pelo magistrado, órgão do Poder Judiciário. E, dentro desse viés, toda e qualquer questão ligada à marcha processual, bem como sua efetiva validade, são de interesse público.

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O princípio sobre o qual nos debruçamos neste momento (pas de nullité sans grief) tem como grande função a garantia de um processo supostamente fluido, escorreito e livre de alegações prolixas, meramente protelatórias ou redigidas com o objetivo de procrastinar a prestação jurisdicional. Em que pese seja justa, eu até diria nobre, a motivação que o calça, por outro lado, ainda não me convenci deste suposto “poder” que a parte possa ter de tornar – de per si – parnasiano o processo a ponto de fazer perecer o seu objeto, ou nos termos do novo Código de Processo Civil do Brasil, o resultado útil do processo.

Em que pese o princípio francês seja aplicado no Brasil até mesmo pelas cortes superiores, com a devida vaenia, entendo que sua utilização mais se deve a opções de política criminal do que, propriamente, ao estrito cumprimento da Constituição Federal. Especialmente quando a seara de aplicação é a criminal, última camada de atuação estatal e última ratio do exercício do jus puniendi que o Estado evocou para si. Tudo isso porque no âmbito do Processo Civil, as manobras adjetivas fazem parte das estratégias das partes. E, mesmo assim, conforme já demonstrado anteriormente, a natureza jurídica do processo é pública.

Quanto ao Processo Penal, além do mesmo viés público inerente aos procedimentos em tramitação no Poder Judiciário, não se pode perder de horizonte que nesta modalidade adjetiva a liberdade de uma pessoa está em análise. Nesse sentido, toda a liturgia procedimental deverá ser observada, em estrito cumprimento do art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, o comando instituidor do Due Process of Law no Brasil.

Dessa forma, nulidades processuais – como já dito pelo próprio nome – são elementos que inviabilizam o processo, fazem dele nulo. Mas, com a aplicabilidade do princípio francês, mitiga-se o efeito do equívoco adjetivo, condicionando seu reconhecimento à ocorrência de um prejuízo ao réu. E essa forma de relativização (ou convalidação da turbação processual) é um meio legal, porém, ao meu entender, inconstitucional de violar o devido processo legal.

Senão, vejamos. O sistema persecutório penal estabelece uma rigorosa lista de procedimentos a serem seguidos pelas autoridades que manejam a persecução. Dado momento, um ou vários direitos do réu são vergastados por algum motivo desconhecido, não motivado, não declarado, nem, tampouco, justificado. Simplesmente ignorado, sob o supedâneo da expressão popular “se colar, colou”. Tudo isso sempre depositando fiança no despreparo técnico dos advogados e na falta de conhecimento jurídico das partes.

Ato contínuo, o defensor – quebrando o paradigma lançado – encontra o equívoco processual e traz o problema à tona. O direito à nulidade dos atos feitos em descompasso com a liturgia processual será limitado, nos termos do art. 563 do Código de Processo Penal, cabendo à parte também demonstrar o prejuízo concreto experimentado. Tudo isso ainda alinhado ao chamado Princípio da Instrumentalidade das Formas, arraigado no art. 566 do mesmo Codex, o qual estabelece, necessariamente, que o prejuízo ventilado deverá influir na verdade substancial ou na decisão da causa.

Dessa forma, todas as vezes que o processo descamba para a subjetividade, entendo que o risco à segurança jurídica atinge patamares inaceitáveis dentro de um Estado de Direito. Trata-se de uma fungibilidade de atos processuais, construída de maneira pessoal e subjetiva, impactando diretamente na busca pela verdade real (verdade substancial) e, consequentemente, na decisão da causa. Por violar normas – inclusive principiológicas – entendo que seja um ponto que ainda carece de profunda discussão nos tribunais superiores, sobretudo STF, devendo serem esses casos para lá encaminhados quando de suas ocorrências.

Por derradeiro, insta refletir sobre o conceito de “prejuízo”, ou “prejuízo concreto”, o qual jamais poderá se confundir com “dano”. O prejuízo processual é a consequência direta de um equívoco praticado no trâmite dos autos, que conspurcou o processo e, de alguma forma, ainda que mínima, poderá causar ou já tenha causado reflexo na verdade substancial ou na decisão da causa. Quanto ao dano, prima facie, ocorre mediante dolo ou culpa e se caracteriza por um ato ilícito, no mínimo de viés cível, suscetível de reparação indenizatória, nos termos do art. 927 do Código Civil. Diferente do prejuízo, o dano extrapola o microcosmo do processo e atinge o indivíduo em sua vida, ou até mesmo de seus familiares.

Portanto, ainda que contrário à necessidade de se comprovar o prejuízo para suscitar a nulidade, é necessário obediência ao ordenamento jurídico e à jurisprudência, os quais caminham nesse sentido. Mas, também não se pode esperar que a quebra de liturgia processual cause um dano ao indivíduo para que ela possa pugnar pela nulidade dos atos praticados e subsequentes. O prejuízo ao acusado já é suficiente para obstar e anular a persecução desde a violação perpetrada até o reconhecimento da nulidade, até mesmo para que a situação não evolua para um dano ou uma decisão injusta.

E em qualquer contexto, ou qualquer situação dentro do Processo Penal, a máxima do in dubio pro reo é de observação imprescindível, sendo inalienável esse direito. Portanto, na dúvida da ocorrência ou não de prejuízo concreto ao acusado, certamente a nulidade do ato vergastado é medida de rigor.


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Marcelo Henrique
Marcelo Henrique
Jurista, Jornalista, Professor e Escritor Escreve para o Mental Health Affairs, de Nova York - EUA, para o Psychreg, de Londres - UK, para o Intelectualidade.online, para o Brasil Agora Online, para o portal Direito e Negócios e portal Juristas Eleito escritor mais influente dos últimos seis anos no Mental Health Affairs.

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