Servidão algorítmica

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A mercantilização total da vida (Harvey, 2008) não se limite à reprogramação do imaginário social (Magossi, 2023), mas legitima assimetrias de poder e reforça violências simbólicas ao impor a servidão algorítmica (Magossi, 2025) como nova exigência de época.

O conceito de servidão algorítmica (Magossi, 2025) designa os sistemas de automação que regulam comportamentos, coletam dados e impõem métricas de desempenho em prol da performatividade espectral (Magossi, 2025) tipificada da cibercultura.

O termo foi cunhado com base na leitura das obras de Zuboff (2021) sobre o capitalismo de vigilância e no conceito de psicopolítica proposto por Byung-Chul Han (2018); e reflete sobre estágios distintos de controle da sociedade mediática avançada (Trivinho, 2007).

  • Shoshana Zuboff (2021) define o “capitalismo de vigilância” como um regime econômico baseado na extração, análise e monetização de dados pessoais em escala massiva, no qual comportamentos humanos são convertidos em matéria-prima para predição e controle sistêmico.
  • Byung-Chul Han (2018) introduz a psicopolítica como tecnologia de poder que instrumentaliza a liberdade individual, transformando o sujeito em “empresário de si” sob a vigilância algorítmica e a exigência de automonitoramento.
  • Eugênio Trivinho (2007) caracteriza a sociedade mediática avançada pela centralidade dos meios técnico-comunicacionais na organização social contemporânea, cuja lógica de velocidade dilui fronteiras entre público e privado e acelera processos de alienação, domesticação e controle.

Para compreensão do conceito em questão, é necessário definir alguns outros conceitos que estabelecem relações sociofenomenológicas multilaterais entre as dinâmicas de poder dos grandes oligopólios de base tecnológica e seu impactos no atual horizonte de época, a saber, processos sociomediáticos fundamentalmente caracterizados pela violência simbólica (Bourdieu, 2004), meticulosamente camuflados por simulacros  (Baudrillard, 1991) que confundem o imaginário social  (Castoriadis, 1986) e domesticam o indivíduo.

  • Pierre Bourdieu (2004) descreve a violência simbólica como imposição de estruturas de dominação internalizadas pelos indivíduos, sem recurso à força física. Na cibercultura, essa violência manifesta-se na aceitação acrítica de padrões mediáticos que legitimam desigualdades como escolhas individuais.
  • Jean Baudrillard (1991) compreende o “simulacro” pelas representações hiper-reais (Baudrillard, 1991) que substituem a realidade por signos mediáticos. Em contexto cibercultural, o termo aplica-se à construção desejos artificiais por meio de imagens, textos e vídeos dissuadidos em redes interativas e algorítmicas que dissimulam relações de consumo sob a lógica do valor simbólico.
  • Cornelius Castoriadis (1986) define o “imaginário social” pelo conjunto de significações que uma sociedade cria para instituir sua realidade (normas, instituições, identidades). Na cibercultura, esse sistema de símbolos é colonizado — reprogramado (Magossi, 2023) — por simulacros mediáticos (Baudrillard, 1991) que distorcem a percepção coletiva, legitimando práticas opressivas.

Sendo assim, a servidão algorítmica revela-se como forma sofisticada de dominação psíquica, imbricando violências simbólicas, simulacros e controles de dados em uma engrenagem que ameaça a autonomia individual. Desvendar essa engrenagem sistêmica é condição sine qua non para elaborar contranarrativas que questionem os processos de alienação identitária e o esvaziamento existencial impostos pela lógica neoliberal.

Referências

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.
LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. 6. ed. Campinas: Papirus, 2013.
MAGOSSI, Priscila Gonçalves. Submundo da cibercultura: violência contra a mulher e reprogramação do imaginário social. Pesquisa de Pós-doutorado em Comunicação e Cultura Midiática (Universidade Paulista). 2023. Disponível em: https://www.academia.edu/115746356/Submundo_da_cibercultura_viol%C3%AAncia_contra_a_mulher_e_reprograma%C3%A7%C3%A3o_do_imagin%C3%A1rio_social
MAGOSSI, Priscila Gonçalves. Performatividade espectral na cibercultura. In: Portal Juristas — ISSN: 1808-8074. Publicado em 16 maio de 2025. Disponível em: https://juristas.com.br/artigos/performatividade-espectral-na-cibercultura/.
TRIVINHO, Eugênio. A dromocracia cibercultural: lógica da vida humana na civilização mediática avançada. São Paulo: Paulus, 2007.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

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