Tipos-grafia. Os tipos são os caracteres, as letras, números e símbolos gráficos. Tem esse nome porque se trata de uma alusão aos “tipos móveis”, peças de metal em relevo, individuais, reutilizáveis e montadas em um sistema mecânico de impressão inventado por Guttenberg.[1] Um dos passos mais importantes da humanidade; algo sem o que não teríamos modernidade. Sim, os tipos coincidem com a invenção da prensa e surgimento da imprensa, embora o estudo da tipografia abranja os desenhos desde o surgimento dos hieróglifos e alfabetos até estas linhas que você acaba de ler graças à internet.
Conceitualmente, tipografia é “conjunto de práticas subjacentes à criação e utilização de símbolos visíveis relacionados aos caracteres ortográficos (letras) e para-ortográficos (tais como números e sinais de pontuação) para fins de reprodução, independentemente do modo como foram criados (a mão livre, por meios mecânicos) ou reproduzidos (impressos em papel, gravados em documento digital”.[2]
Tipografia é relevante. Como diz Matthew Butterick, ignorar a tipografia significa negar a oportunidade de aprimorar sua escrita e sua advocacia. É uma loucura pensar que ninguém se importa com a aparência do texto e somente com o conteúdo.[3]
1.Tipografia não é apenas escolher uma fonte bonitinha
O texto é uma representação gráfica que cria sentimentos no leitor. A organização da petição no papel, ou na tela, é capaz de despertar maior ou menor atenção. Esse é o trabalho do designer de tipos. E, cá entre nós, não há como se falar em visual law – uso de cores, ícones e figuras – se o advogado não consegue visualizar que o desenho das letras e do bloco de texto passa ao interlocutor uma mensagem autônoma em relação ao que está escrito. Imagine escrever um seríssimo pedido de revogação de prisão preventiva, mas em Comic Sans; uma tragédia. A tipografia diz respeito a sutilezas que podem fazer toda a diferença. Está relacionada à acessibilidade e credibilidade da mensagem que passamos.
2. Hierarquia visual é organização e clareza
Não é possível passar uma mensagem clara se o texto não está organizado – visualmente e conceitualmente. Por isso é necessário indicar o início e fim de um assunto, o que está subordinado a um determinado tema, o que é mais importante, e o que não é. Assim, organizamos o texto em títulos, subtítulos e corpo de texto. Essa hierarquia se constrói também com a ajuda da correta escolha da família de fonte[4] – o que contribui para que a clareza esteja garantida até para um leitor desatento. Um conceito que pode te ajudar aqui é “usuário”. O leitor-usuário, deve navegar pelo texto, se orientar pelos temas. “Embora muitos livros afirmem que o propósito da tipografia seria o de melhorar a legibilidade da palavra escrita, uma das funções mais humanas do design é, na verdade, ajudar os leitores a evitar a leitura”[5]. Como eu já disse em outra oportunidade[6], é necessário dar a chance de o leitor escolher o que vai ler; nem sempre é necessário ler tudo, nem sempre a leitura precisa obedecer à lógica linear.
Usualmente os títulos estão em negrito. A tipografia nos ajuda a fazer corretamente a sinalização. A dica mais valiosa que recebi foi que é dispensável empilhar o negritos, itálicos, caixas altas e sublinhados (constitui um verdadeiro “crime tipográfico” esse excesso[7]). Diogo Malan já nos advertiu disso – e de outras coisas – a respeito da arte dos nossos “arrazoados”[8]. É possível sim combinar esses indicadores. Porém, não raro, as petições exageram. Às vezes tem mais coisas em negrito, sublinhado e itálico do que texto regular – se você não é o nosso ex-decano do Supremo Tribunal, Min. Celso de Melo, não faça isso. Uma boa dica é visualizar como bons jornais, revistas e livros fazem esses destaques. Eles não nunca usam textos sublinhados, por exemplo.
Um interessante artigo norte-americano[9] traz estudos sobre a facilitação da leitura e o excesso de sinalização. Textos em caixa alta (maiúsculas) diminuem a velocidade de leitura em até 19%; o abuso do itálico diminui o ritmo em até 10%. Sublinhado possivelmente reduz em torno de 10% também. Apenas o negrito parece não influir significativamente.
E existem outras redundâncias mais sutis, porém muito comuns. Por exemplo: não se usa recuo no início dos parágrafos e espaços entre os parágrafos ao mesmo tempo, pois os dois recursos servem para a mesma coisa – indicar o início de um novo parágrafo. Também é bom evitar.
Para o futuro: estou começando a usar links internos no PDF das petições. Esse é um recurso ainda pouco utilizado, mas com um pouco de criatividade podemos aumentar a navegabilidade do texto. Então coloco na petição um link que orienta o caminho para ir diretamente aos pedidos, ou para a alguma tese específica, ou ainda, direto para um anexo ao final da petição. Basta clicar. Posso estar errado, mas tendo a dizer que os leitores ainda não confiam em links externos (que remetem para outros lugares da internet). Essa é uma opinião absolutamente intuitiva e pessoal. É que eu mesmo não costumo acessar os QR Codes que alguns colegas inserem nas peças, embora eu seja um entusiasta da experimentação de novas ferramentas. O nosso usuário está inquieto e impaciente; se não for bem utilizado, o link externo pode ser apenas uma fonte de desatenção, pois muda bruscamente a tela, o lugar sobre o qual depositamos a atenção durante o trabalho.
3.Os espaços em branco também compõem o visual gráfico da petição
Ouvi Marcelino Freire dizer, a propósito da escrita literária, que um livro deve ter “um respiro”[10]. O ritual das páginas preambulares, dos espaços entre um subtítulo e outro, o vão entre a página e o início do texto, todos esses são elementos que compõem e dão leveza ao texto. Assim como as pausas definem e dão sentido à música, os espaços são importantes para as palavras. Quer causar uma boa impressão de leitura? Deixe o texto respirar. De nada adianta vangloriar-se de peticionar em 3 páginas, se você usa Arial 8, espaçamento simples, com margens estreitíssimas. Eu gosto de margens bem largas. E nelas eu costumo colocar caixas de texto. Assim como usualmente fazemos com as notas de rodapé, as uso como notas de margem; são notas marginais. Mas não digo isso como “o certo”; muita gente boa defende que o texto deve ter densidade de informação. Assim, os blocos brancos podem ser um espaço não aproveitado. Independentemente disso, o que você não pode fazer é comprimir os textos acreditando que isso facilita o trabalho da leitura.
O espaço que precisa ser corrigido em alguns pares de letras de algumas fontes é chamado de Kerning. O espaço entre as letras, no geral, de espaçamento ou espacejamento. Entrepalavras, entrelinhas e entre parágrafos, os nomes já falam por si. Espaço é ritmo.
O Kerning pode parecer imperceptível para nós leigos; mas a falta desse cuidado não escapa a um sentimento de que algo está desalinhado, fora do lugar. Em alguns casos alguns pares de letras têm um espeço irregular, às vezes invadindo o espaço uma da outra, ou ainda, se afastando demais. No Word você pode ir até “ajustes avançados de fontes” e corrigir, mas o ideal é escolher uma família de fontes que não tem problemas de Kerning.[11]
Além desse detalhe, é possível ajustar o espaçamento geral entre letras. Porém, normalmente, isso não é necessário. A não ser que você esteja utilizando uma palavra inteira em caixa alta. Nesse caso é recomendado usar um espaçamento entre letras um pouco maior. Traz mais conforto à leitura e destaque ao texto.
Já quando a desatenção está nos espaços “entrepalavras”, sem querer criamos buracos chamados de “rios”. Hoje é o que mais me chama atenção em qualquer petição. Isso acontece porque temos o costume de usar textos como alinhamento “justificado” sem ativar a hifenização. O justificado te parecer mais bonito, pois dá um contorno reto ao bloco de texto. Porém, sem a hifenização ativada, o “justificado” distorce os espaços, criando esses buracos desproporcionalmente grandes entre palavras. Por isso o ideal seria usarmos o alinhamento à esquerda (como esse texto aqui e como a maioria dos textos da internet). Porém ele normalmente faz uma franja na borda direita; a maioria de nós acha isso esquisito e sinal de desleixo de uma petição. Solução: hifenização. Não acaba com todos os problemas, fica 90% melhor. Eu uso sempre. No Word, vá em layout>hifenização>automático. Cuide também de como as primeiras e últimas frases iniciam ou encerram os parágrafos. É bom evitar as órfãs. Acontece quando a primeira linha fica com uma ou duas palavras isoladas do restante do texto, geralmente quando usamos alinhamento à esquerda ou à direita. Também assim, as viúvas; que é quando o mesmo acontece na última frase do parágrafo. Tudo isso pode deixar um estranho fluxo branco no meio do seu parágrafo ou corpo de texto. Pode até parecer frescura, mas esses detalhes podem desviar a atenção do leitor, levando os olhos dele para um lugar que o escritor não desejava. Não é isso que queremos. Para resolver esse e outros problemas, troque as palavras, resuma frases ou use shift+enter.
Por fim, entrelinhamentos pequenos provocam confusão na leitura (quem nunca começou a ler em uma linha e terminou em outra?). Assim, o ideal é que você ajuste um espaço arejado entrelinhas, algo entre 20% e 50% a mais do tamanho de sua fonte. Para isso, no Word, vá em parágrafo, ajuste o espaço entre linhas para 1,2 ou 1,5.
4. Tipografia também é persuasão.
Não, o seu texto não é tão bonito e persuasivo quanto você acha. Não, o juiz não está preocupado em fazer o seu cliente feliz. Ler o que você escreve não é o hobby dele, é o seu trabalho; ler muitas e muitas petições é o trabalho dele. [12] A tipografia trabalha com a atração da atenção e te ajuda a acabar com mitos que atrapalham a sua estratégia de convencimento. Estamos cegos para detalhes que podem estar atrapalhando a visualização e compreensão de nossa mensagem. Hoje o tempo do leitor é ouro. E ele está impaciente. Ajude a si mesmo: uma mensagem persuasiva deve ser pensada nos mínimos detalhes para causar impacto.
5. A tipografia dá personalidade para a sua peça
Qual personalidade você quer transparecer ao tratar com os tribunais? A escolha do desenho das letras altera a expressão do texto. Você pode até duvidar, mas no fundo sabe que reconhecemos se um trabalho é profissional pela apresentação visual do texto. É por isso, por exemplo, que você sente rapidamente quando uma apresentação é amadora. É como quando você recebe um e-mail falso do seu banco. Você pode até não identificar de primeira, mas, se estiver atento, nota que há algo de errado. Seja profissional e mostre quem você é.
6. Legibilidade e leiturabilidade são conceitos indispensáveis
Sim, são coisas diferentes. A legibilidade está ligada ao tipos (o desenho das letras e símbolos gráficos), “clareza dos caracteres e a velocidade com que podem ser reconhecidos”[13]. Já a leiturabilidade “se refere a forma como o texto está organizado e escrito, interferindo, portando, na facilidade de leitura e compreensão de textos longos” [14]. Notem: não basta organizar bem o texto. A escolha da fonte certa é um passo importantíssimo. Os mais pragmáticos talvez já tenham ouvido falar que as “fontes serifadas” (aquelas que tem “perninhas” ou “risquinhos” nas letras, como a Times New Roman) facilitam a leitura. às vezes isso parece consenso até entre alguns designers. Entretanto, alguns estudos sugerem que isso não é bem verdade[15]. As fontes serifadas não representam ganho significativo na velocidade de leitura. Nem há evidência científica que as não serifadas (ou sans serif) tenham alguma vantagem aqui – embora alguns afirmem que as crianças pequenas as reconhecem mais facilmente[16]. O mérito da serifa está ligada ao seu significado intrínseco: seriedade, classe, tradição. Já as fontes sem serifa têm origem na escrita do povo, desligada do Estado ou da Igreja, símbolo de modernidade. Isso nada tem que ver com legibilidade. Outros detalhes como tamanho, espaçamento entre letras, Kernig e entre linhas parecem ser mais relevantes nesse quesitos. Existem outras tantas questões que, infelizmente, escapam ao propósito desse texto (e também ao meu conhecimento sobre o assunto). Procure saber mais, consulte um designer especialista em tipografia.
7. A tipografia trabalha com a perspectiva do leitor
Para a tipografia não interessa facilitar o trabalho do escritor. Desenhe seu texto da forma mais agradável e dirigida a quem o lerá. “A tipografia é para o benefício do leitor, não do escritor”[17]. Acho que isso resume bem o meu sentimento a respeito do que significa escrever bem na advocacia.
* Faço aqui um especial agradecimento à Prof.ª Dra. Mary Vonni Meürer[18] – uma das principais especialistas em seleção tipográfica no Brasil – pela disponibilidade em tirar dúvidas, aparar arestas e ensinar.
Notas de fim
[1] CLAIR, Kate. Manual de tipografia [recurso eletrônico]: a história, a técnica e a arte. Tradução de Joaquim Fonseca. 2ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2009, p. 51.
[2] FARIAS, Priscila lena. Notas para uma normatização da nomenclatura tipográfica. Disponível em https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4626110/mod_resource/content/1/FARIAS-NomenclaturaTipo.pdf.
[3] BUTTERICK, Matthew. Typography for Lawyers: essential tools for polished & pesuasive documents. 2ª Ed. Houston: O’Connor’s, 2015, p. 14 e 28.
[4] A escolha de uma família completa de fonte auxilia na construção correta da hierarquia. A família Arial, por exemplo, conta com Arial Italic, Arial Black, Arial Condensend. Existem ainda famílias com e sem serifa, que também ajudam muito nesse trabalho.
[5] LUPTON, Ellen. Pensar com Tipos: guia para designers, escritores editores e estudantes. Trad. Priscila Farias, Osasco: Gustavo Gili, 2020, p. 87.
[6] https://juristas.com.br/2021/01/25/peticoes-com-metadiscurso/
[7] A expressão é da Ellen Lupton, op. cit.
[8] MALAN, Diogo. Advocacia criminal e o processo intelectual de elaboração do arrazoado. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jun-24/diogo-malan-advocacia-criminal-arte-arrazoado.
[9] ROBBINS, Ruth Anne. Painting with Print: Incorporating Concepts of Typographic and Layout Design into the Text of Legal Writing Documents In Journal of the Association of Legal Writing Directors, Vol. 2, p. 108, 2004, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=918526. [O texto foi citado a primeira vez entre nós no pelo texto do Prof. Diogo Malan, vide nota 12, referência acima].
[10] Curso de escrita literária, disponível em https://www.navega.art.br/products/escrita-marcelino-freire.
[11] Uma forma prática de saber se a fonte necessita dessa correção – e se o Word pode dar conta disso – é aplicar a correção de Kerning em uma parte grande do texto e visualizar se houve alteração.
[12] BUTTERICK, Matthew. Typography for Lawyers: essential tools for polished & pesuasive documents. 2ª Ed. Houston: O’Connor’s, 2015, p. 21.
[13] MEÜRER, Mary Vonni. Seleção Tipográfica no Contexto do Design Editorial: um modelo de apoio à tomada de decisão. Tese (Doutorado em Design) – Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2017, p. 59.
[14] Idem.
[15] ARDITI, Aries. CHO, Jianna. Serifs and font legibility, Vision Research, Vol. 452005, disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4612630/
[16] STRITZVER, Ilene. Serif vs. Sans for Text in Print, disponível em https://www.fonts.com/content/learning/fontology/level-1/type-anatomy/serif-vs-sans-for-text-in-print
[17] BUTTERICK, Matthew. Typography for Lawyers: essential tools for polished & pesuasive documents. 2ª Ed. Houston: O’Connor’s, 2015, p. 21.
[18] http://lattes.cnpq.br/9474971455410741
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