Particulares podem discutir posse de imóvel localizado em área pública

Data:

Aos particulares que ocupam terras públicas sem destinação específica é permitido o pedido judicial de proteção possessória. A possibilidade não retira o bem do patrimônio do Estado, mas reconhece a posse do particular, que garante a função social da propriedade e cristaliza valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia e o aproveitamento do solo.

O entendimento foi firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar recurso em ação de reintegração de posse entre dois particulares que disputam imóvel pertencente ao Distrito Federal. De forma unânime, o colegiado negou provimento ao recurso do ente público e manteve acórdão que determinou novo julgamento em primeira instância, após a abertura da fase de produção de provas.

A discussão original foi travada em ação de reintegração de posse entre dois particulares por área rural no DF. O autor alegou que, após 20 anos de posse no imóvel, foi surpreendido por invasão e parcelamento de metade da área pelo réu.

Ainda na primeira instância, o Distrito Federal ingressou na ação como interveniente anômalo, conforme definido no artigo 5º da Lei 9.469/97, alegando ter havido parcelamento irregular do solo.

Possibilidade jurídica

O juiz considerou improcedente o pedido de reintegração por entender que, como a área discutida nos autos estava situada em terra pública, não havia direito de posse a ser defendido pelos dois particulares.

A sentença foi cassada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF). Após confirmar a possibilidade jurídica do pedido de disputa possessória por particulares em imóveis do poder público, os desembargadores entenderam haver necessidade da produção de prova oral e pericial para determinação da posse.

Com a modificação do julgamento na segunda instância, o Distrito Federal apresentou recurso especial ao STJ. Alegou ser impossível ao particular o pedido de proteção possessória sobre imóvel de natureza pública, pois ele, nesses casos, possui mera detenção do bem, não havendo possibilidade do cumprimento dos pressupostos estabelecidos pelo Código de Processo Civil de 1973.

Possuidores

O relator do caso na Quarta Turma, ministro Luis Felipe Salomão, esclareceu inicialmente que, segundo o artigo 1.196 do Código Civil, considera-se possuidor aquele que tem de fato o exercício, de forma plena ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Salomão também lembrou a importância de diferenciar os casos em que pessoas invadem imóvel público e posteriormente almejam proteção possessória e os litígios em que, como no recurso analisado, são levantadas questões possessórias entre particulares por imóvel situado em terras públicas.

O ministro destacou que as turmas de direito privado do STJ costumavam caracterizar o ocupante de bem público como mero detentor do imóvel, sem legitimidade para pleitear proteção possessória ou indenização por benfeitorias realizadas.

Todavia, Salomão enfatizou a recente evolução de posicionamento dos colegiados do tribunal no sentido de que, dependendo do caso, é possível a discussão possessória em bens dessa natureza por particulares, “devendo a questão ser interpretada à luz da nova realidade social”.

A evolução de entendimento leva em conta o conceito de bens públicos dominicais, definidos pelo Código Civil como aqueles que, apesar de fazerem parte do acervo estatal, encontram-se desafetados, sem destinação especial e sem finalidade pública. Em imóveis desse tipo, o particular exerce poder fático sobre o bem e lhe garante sua função social, podendo propor interditos possessórios contra terceiros que venham a ameaçar ou violar sua posse.

Aproveitamento concreto

“Em suma, não haverá alteração na titularidade dominial do bem, que continuará nas mãos do Estado, mantendo sua natureza pública. No entanto, na contenda entre particulares, reconhecida no meio social como a manifestação e exteriorização do poder fático e duradouro sobre a coisa, a relação será eminentemente possessória e, por conseguinte, nos bens do patrimônio disponível do Estado, despojados de destinação pública, será plenamente possível — ainda que de forma precária —, a proteção possessória pelos ocupantes da terra pública que venham a lhe dar função social”, resumiu o relator.

No voto, que foi acompanhado de forma unânime pelo colegiado, Salomão também destacou que a posse deve ser analisada de forma autônoma em relação à propriedade, por ser fenômeno de relevante densidade social.

Para o ministro, a posse deve expressar o aproveitamento concreto e efetivo do bem para o alcance do interesse existencial, “tendo como vetor de ponderação a dignidade da pessoa humana, sendo o acesso à posse um instrumento de redução de desigualdades sociais e justiça distributiva”.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1296964
Wilson Roberto
Wilson Robertohttp://www.wilsonroberto.com.br
Advogado militante, bacharel em Administração de Empresas pela Universidade Federal da Paraíba, MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, professor, palestrante, empresário, Bacharel em Direito pelo Unipê, especialista e mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Atualmente é doutorando em Direito Empresarial pela mesma Universidade. Autor de livros e artigos.

Deixe um comentário

Compartilhe

Inscreva-se

Últimas

Recentes
Veja Mais

Concessionária de energia é condenada a indenizar usuária por interrupção no fornecimento

A 33ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a condenação de uma concessionária de energia ao pagamento de R$ 10 mil por danos morais a uma usuária que ficou sem fornecimento de energia elétrica por quatro dias, após fortes chuvas na capital paulista em 2023. A decisão foi proferida pelo juiz Otávio Augusto de Oliveira Franco, da 2ª Vara Cível do Foro Regional de Vila Prudente.

Homem é condenado por incêndio que causou a morte do pai idoso

A 3ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a condenação de um homem pelo crime de incêndio que resultou na morte de seu pai idoso. A decisão, proferida pela Vara Única de Conchal, reduziu a pena para oito anos de reclusão, a ser cumprida em regime fechado.

Remuneração por combate a incêndio no Porto de Santos deve se limitar ao valor do bem salvo

A 9ª Vara Cível de Santos condenou uma empresa a pagar R$ 2,8 milhões a outra companhia pelos serviços de assistência prestados no combate a um incêndio em terminal localizado no Porto de Santos. O valor foi determinado com base no limite do bem efetivamente salvo durante a operação.

Casal é condenado por expor adolescente a perigo e mantê-lo em cárcere privado após cerimônia com chá de ayahuasca

A 13ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) confirmou a condenação de um casal pelos crimes de sequestro, cárcere privado e exposição ao perigo à saúde ou vida, cometidos contra um adolescente de 16 anos. A decisão, proferida pela juíza Naira Blanco Machado, da 4ª Vara Criminal de São José dos Campos, fixou as penas em dois anos e quatro meses de reclusão e três meses de detenção, substituídas por prestação de serviços à comunidade e pagamento de um salário mínimo.