STF abre precedente para descriminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez

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A primeira turma do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus 124306, afastou a prisão preventiva de Edilson dos Santos, Rosemere Aparecida Ferreira e demais corréus, funcionários de uma clínica que auxiliaram uma mulher a interromper voluntariamente sua gravidez no primeiro trimestre.

Os pacientes foram denunciados pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) pela suposta prática do crime de aborto com o consentimento da gestante e formação de quadrilha.  Presos em flagrante, o juízo de primeiro grau deferiu a liberdade provisória aos acusados.

O MPRJ recorreu ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que decretou a prisão preventiva dos acusados, mantida pelo Superior Tribunal de Justiça. A defesa impetrou habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, em 2014, com relatoria do Ministro Marco Aurélio. O ministro deferiu cautelar para revogar a prisão, posteriormente estendida aos demais corréus.

Em agosto de 2015, com os funcionários já soltos, o ministro Luís Roberto Barroso pediu vista do processo. Na última terça-feira (29), apresentou seu voto-vista no sentido do não conhecimento do HC, por se tratar de substitutivo de recurso, mas pela concessão da ordem de ofício, estendendo-a aos corréus, dada a relevância e delicadeza da matéria.

Conforme voto vencedor do, os requisitos para autorizar a prisão cautelar não se sustentam, uma vez que “os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação”.

Em seu voto, o ministro ainda tratou especificamente da criminalização do aborto, dizendo que ela é incompatível com os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, com sua autonomia, com a integridade física e psíquica da gestante, e com a igualdade de gênero. Ressaltou ainda o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres, que não têm recursos para realizar o procedimento de maneira segura.

Por fim, Luís Roberto Barroso frisou que “nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália”.

A decisão da Primeira Turma abre importante precedente para descriminalizar o aborto no primeiro trimestre de gestação, tema bastante controvertido no Brasil.

Leia o Voto-Vista.

Ementa:

DIREITO PROCESSUAL PENAL . HABEAS CORPUS . PRISÃO PREVENTIVA . AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO . INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE . ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO . 1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar , não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. 3. Em segundo lugar , é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher , que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a 2 igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas , recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam – se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade p or motivos qu e se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização , tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote – se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha , Portugal , Holanda e Austrália . 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo – se a decisão aos corréus. (HABEAS CORPUS 124.306 – RIO DE JANEIRO – RELATOR : MIN . MARCO AURÉLIO PACTE .( S ) : EDILSON DOS SANTOS – PACTE .( S ) : ROSEMERE A PARECIDA FERREIRA IMPTE.( S ) : JAIR LEITE PEREIRA – COATOR (A/S)( ES ) : SUPERIOR T RIBUNAL DE JUSTIÇA / VOTO – VISTA: O MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO)

Flávia Costa
Flávia Costa
Correspondente do Portal Juristas

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