Sentença reconhece responsabilidade objetiva do empregador
A 42ª Vara Cível da Comarca de São Paulo (Foro Central Cível) condenou a empresa de delivery iFood e o restaurante Yakisoba Factory a indenizarem o Condomínio Edifício Palladio por furto ocorrido dentro de suas dependências.
O valor indenizatório foi arbitrado em R$ 1.749,90 (um mil e setecentos e quarenta e nove reais e noventa centavos) a título de danos materiais.
De acordo com o que há nos autos, uma pessoa que trabalhava no Condomínio Edifício Palladio pediu refeição junto ao restaurante Yakisoba Factory por intermédio do aplicativo iFood. O entregador do iFood, ao adentrar no condomínio, furtou um capacete de motociclista.
De acordo com o juiz de direito André Augusto Salvador Bezerra, a responsabilidade do empregador sobre seus empregados, prevista em lei, é perfeitamente aplicável ao caso ora noticiado. “Não pode o Estado Juiz acolher uma tese jurídica que coloca uma empresa em situação que poderia ser definida como a melhor dos mundos: não se responsabilizar perante seus entregadores que cumprem corretamente suas funções em condições urbanas adversas, sob jornadas de trabalho ilimitadas e desprovidos de qualquer seguro empregatício contra infortúnios e, da mesma maneira, não se responsabilizar pelos atos de eventuais entregadores que não cumprem suas funções, causando danos a terceiros, como sucedido com a autora”, destacou o magistrado em sua decisão.
O juiz de direito destacou, também, que o restaurante Yakisoba Factory deve arcar solidariamente com a indenização arbitrada em favor do condomínio.
Cabe recurso da decisão.
Processo nº 1067867-23.2019.8.26.0100 – Sentença (inteiro teor para download)
(Com informações do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP)
SENTENÇA
Processo Digital nº:1067867-23.2019.8.26.0100 Classe – Assunto Procedimento Comum Cível – Perdas e Danos Requerente: Condomínio Edifício Palladio Requerido: Ifood.com Agência de Restaurantes On Line S/A e outro Juiz(a) de Direito: Dr(a). André Augusto Salvador Bezerra Vistos. CONDOMÍNIO EDIFCIO PALLADIO ajuizou ação indenizatória em face de IFOOD.COM AGENCIA DE RESTAURANTES ONLINE S.A e YAKISOBA FACTORY FRANCHISING LTDA. Alegou que um funcionário de uma das empresas instaladas no condomínio requerente efetuou pedido de almoço via sistema de aplicativo IFOOD para o restaurante YAKISOBA FACTORY; que o entregador daquela, ao adentrar nas dependências do requerente, furtou capacete que estava no estacionamento, em cima de uma motocicleta; que a empresa responsável pelo estacionamento ressarciu o prejuízo, à vítima do furto, comprando outro capacete igual, no valor de R$ 1.749,90; que desde o ocorrido, a empresa responsável pelo estacionamento exige o reembolso das despesas havidas com a compra do bem furtado. Requereu a condenação das requeridas ao pagamento de R$ 1.749,90 a titulo de danos materiais (fls.01/09) Documentos da inicial acostados nas fls.10/44 Citada, a requerida IFOOD.COM AGENCIA DE RESTAURANTES ONLINE S.A apresentou contestação. No mérito, requereu improcedência da ação, alegando que o Ifood e os entregadores são autônomos e independentes entre si; que é uma mera intermediadora e apenas disponibiliza “espaço virtual” para veicular os produtos oferecidos pelos restaurantes que aderirem ao seu serviço; que não mantem vínculo empregatício com os entregadores (fls.89/96). Documentos da contestação acostados nas fls.97/105 Citada a requerida YAKISOBA FACTORY FRANCHISING LTDA apresentou contestação. No mérito, pleiteou a improcedência da ação, alegando que não cometeu qualquer ato danoso ou ilícito e que a entrega do pedido, feita através do aplicativo Ifood, se deu por uma empresa franqueada (fls.107/113). Documentos da contestação acostados nas fls.114/115 Houve réplica (fls.116/128) Proferida decisão determinando a especificação de provas (fls.129), as rés requereram o julgamento antecipado da lide (131/133) e o autor requereu produção de prova testemunhal (fls.134/135), depositando mídia digital nos autos (fls.136). Intimadas para se manifestar sobre a mídia acostada (137), as rés quedaram-se inerte (fls.139). É o relatório. Fundamento e decido. O julgamento antecipado da lide é de rigor, nos termos do art. 355, inciso I, do Código de Processo Civil, tendo em vista a desnecessidade de dilação probatória em demanda em que se discutem matérias de direito, assentando-se, no mais, em fatos incontroversos ou suficientemente comprovados documentalmente. Ao que se infere dos autos, pessoa que trabalhava no interior do condomínio requerente efetuou pedido de almoço para a ré Yakisoba Factory, fazendo uso do aplicativo IFood, ora corré. O entregador enviado por esta última, contudo, ao ingressar no interior do condomínio para entregar a encomenda, subtraiu um capacete de motociclista, avaliado em R$ 1.749,90. Tais fatos restaram incontroversos. Restaram ainda confirmados pela mídia acostada aos autos pela autora, a qual mostra claramente a subtração de coisa alheia móvel, mencionada na inicial. Resta, então, verificar as consequências jurídicas para ambas as demandadas. Inicio, para isso, a análise do caso no tocante à ré IFood, cuja conclusão gerará efeitos legais automáticos para a ré Yakisoba Factory, como será visto adiante. Pois bem. A tese exposta pela IFood é de que se trata de uma mera intermediadora que disponibiliza “espaço virtual” para veicular os produtos oferecidos pelos restaurantes que aderem ao seu serviço, não mantendo nenhuma relação empregatícia com os entregadores. Dessa forma, não se responsabilizaria por atos destes últimos. Trata-se, contudo, de uma tese social, econômica e, por conseguinte, juridicamente grave e, como tal, deve ser rechaçada com rigor. Explico. Difícil não perceber nos grandes centros urbanos do país ciclistas e motociclistas carregando almoços e jantares em nome da IFood. Na São Paulo de altos e baixos, particularmente, é difícil não se atentar para os entregadores descendo e subindo ladeiras íngremes, preocupados com o tempo de entrega, no qual eventual atraso gera, via avaliação de utentes, perdas de pontos perante a empresa que se diz mera intermediadora. Mas não há apenas perdas de pontos. Tais entregadores podem sofrer lesões pelo descomunal esforço físico depreendido (afinal, é tal espécie de esforço que a subida das ladeiras paulistanas exige para os ciclistas), podem cair nos asfaltos escorregadios nos dias de chuva da “terra da garoa”, podem ser atropelados na São Paulo que testemunhou a morte de mais de 30 ciclistas e mais de 300 motociclistas somente por ano. E apesar de considerável parcela desses entregadores trabalharem de modo constante, remunerado e sob orientações hierárquicas da gestora do aplicativo requerida (sob pena dela serem desligados), são tidos como simples parceiros autônomos, desprovidos, pois, de qualquer seguro empregatício por parte desta última. E mais: sob o raciocínio exposto em contestação, se esses entregadores se desviarem da função pelas quais foram contratados no caso dos autos, praticando furto quando da realização de entregas de refeição – a ré também não se responsabiliza perante terceiros. Afinal, no mesmo pensamento, não são seus empregados ou prepostos. Ora, noticiou a imprensa que, em março do ano de 2019, a IFood alcançou a marca de 17,4 milhões de pedidos processados, recebendo cerca de 600 mil pedidos por dia, número que lhe proporciona a posição de 17 vezes superior aos pedidos de seus concorrentes. De outro lado, a taxa de desemprego do Brasil atualmente é de quase 12%; a renda familiar, por sua vez, é de R$ 1.373,00, segundo IBGE. Para os formalmente empregados, resta o evidente temor do desemprego, refletindo-se na falta de tempo para outras atividades que não o próprio trabalho, inclusive as refeições, fomentando, evidentemente, a atividade de quem lhes traz almoço, lanche e jantar, como a referida ré. Não é necessário ser um especialista em relações econômicas para perceber a espécie de mão de obra supostamente parceira e autônoma que a empresa ré tem à sua disposição. Há milhões de desempregados e há milhões de pessoas cuja renda familiar não é suficiente para o sustento básico da família e que, como tal, têm de aceitar qualquer espécie de trabalho, fornecendo, ainda que sob condições desvantajosas, alimentação para um mercado consumidor formado por pessoas que necessitam de tal espécie de serviço em grandes Municípios cujos restaurantes, muitas vezes, situam-se em uma distância que lhes incapacita do deslocamento no horário das refeições. O suposto vínculo autônomo entre a IFood e seus entregadores ou até mesmo entre a IFood e seus consumidores de encomendas, na realidade, não passa de um nome para relações contratuais intensamente desiguais: uma economicamente robusta empresa perante desempregados ou mal remunerados de um dos países mais desiguais do mundo ou perante consumidores presos pela ausência de tempo hábil para realizar atividades cotidianas, que não sejam as laborativas. Claro, relações de direito material fundadas em situações sociais e econômicas desiguais não são vedadas no âmbito de uma economia de mercado, como a brasileira. São válidas, tendo, contudo, de receber atenção especial do Judiciário, Poder de Estado que, em tal condição, deve atuar em favor dos objetivos desse mesmo Estado, constantes na Constituição da República, especialmente, para o caso: 1) construção de sociedade livre, justa e solidária (art. 3, I); 2) Reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III). Toda a descrição de parte do contexto social e econômico que se dão forma às relações entre a ré IFood e seus entregadores e entre a ré IFood e os consumidores das encomendas fez-se necessária para a reflexão jurídica baseada em tais dispositivos constitucionais. Em um país regido por Constituição que promete solidariedade e diminuição de desigualdades, não pode o Estado Juiz acolher uma tese jurídica que coloca uma empresa em situação que poderia ser definida como a melhor dos mundos: não se responsabilizar perante seus entregadores que cumprem corretamente suas funções em condições urbanas adversas, sob jornadas de trabalho ilimitadas e desprovidos de qualquer seguro empregatício contra infortúnios e, da mesma maneira, não se responsabilizar pelos atos de eventuais entregadores que não cumprem suas funções, causando danos a terceiros, como sucedido com a autora. Embora o correr da História não seja um correr linear, sendo, pelo contrário, composto de idas e vindas, não se pode admitir o retorno da economia de mercado aos primeiros tempos da revolução industrial, quando as fábricas eram destituídas de qualquer responsabilidade perante seus empregados e terceiros em nome da “liberdade econômica”. O Brasil é regido por uma ordem jurídica formada por uma série de normas que, sem desconsiderar a liberdade de trocas de uma economia de mercado, impõe a construção de um Estado Social: parafraseando Ronald Dworkin, é preciso levar os direitos a sério. Isentar a ré IFood de responsabilidade é ignorar a ordem jurídica brasileira bem como desprezar a redução das desigualdades, a justiça e a solidariedade prometidas constitucionalmente. É, em suma, não levar a sério o nosso Direito Positivo. Por tudo isso, aplicável, em relação à ré IFood, o disposto nos artigos 186 e 932, III, ambos do Código Civil, os quais impõem a responsabilidade objetiva do empregador sobre ato de seus prepostos/empregados. Aplicável, outrossim, o disposto no artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor, o qual equipara a consumidor toda a vítima do evento, como o condomínio demandante. Deve tal ré, por tudo isso, indenizar o dano no incontroverso valor de R$ 1.749,90. Consequentemente daí ter-se dito que a responsabilização seria juridicamente automática a ré Yakisoba Factory deve se responsabilizar solidariamente. Tal demandada elegeu a ré IFood para proceder à entrega de refeições; se esta última falhou, por seu preposto/empregado, tem de arcar com o erro (e culpa) in eligendo, consoante os dispositivos legais acima citados. Poderia tal ré proceder à entrega de refeições contratando pessoalmente entregadores. Preferiu, porém, a comodidade dos serviços oferecidos pela IFood. Não há como não a responsabilizar por aludida escolha. Ante o exposto, julgo procedente o pedido para condenar solidariamente as rés a indenizar o autor na quantia de R$ 1.749,90, a título de indenização por dano material, corrigido monetariamente desde a data da emissão do respectivo recibo e incidindo juros da mora legais de 1% ao mês desde a citação. Condeno ainda as rés ao pagamento de todas as custas, despesas processuais e honorários advocatícios, estes fixados por equidade em 20% sobre o valor atualizado da causa. P.I.C. São Paulo, 31 de janeiro de 2020. DOCUMENTO ASSINADO DIGITALMENTE NOS TERMOS DA LEI 11.419/2006, CONFORME IMPRESSÃO À MARGEM DIREITA