“Existe uma cultura jurídica de encarceramento no país, e isso traz diversas implicações para o Brasil”, disse hoje (23) o juiz Claudio do Prado Amaral, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto – a 313 quilômetros da capital paulista – e coordenador do Grupo de Estudos Carcerários Aplicados da USP.
Para ele, o Judiciário é um dos grandes culpados pelo alto número de pessoas presas no país. “O Supremo Tribunal Federal (STF) já tem várias decisões demonstrando e abrindo a possibilidade de desencarceramento. Entretanto, é muito difícil os tribunais estaduais seguirem completamente as orientações do STF, optando por uma cultura de encarceramento”, ressaltou.
O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, com 622.202 pessoas presas em dezembro de 2014, de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia. Cerca de 40% são presos provisórios, sem sentença transitada em julgado.
Essa cultura de encarceramento, segundo ele, gera implicações; principalmente sociais. “O maior problema do encarceramento em massa é a superpopulação que isso gera, como no caso do Brasil, com 300 presos por 100 mil habitantes [mais do que a média mundial, de 144 presos por 100 mil habitantes]. Você tende ao descontrole administrativo, o que vai gerar dessocialização. Ou seja: o indivíduo, quando deixar o cárcere, vai sair em condições de sociabilidade muito piores do que as condições existentes quando ele entrou”, disse o juiz à Agência Brasil.
Além disso, o encarceramento em massa aumenta os custos do Estado com funcionários, alimentação e várias outras despesas inerentes ao encarceramento. “Quando empregamos mal esse dinheiro, produzindo resultados contraproducentes, é como se estivéssemos jogando dinheiro no lixo. Independentemente da questão humana, que é muito sofrível, existe ainda uma questão administrativa, econômica e financeira, de economia mesmo, de fazer render os investimentos do Estado”, acrescentou.
Segundo Amaral, essa cultura de encarceramento em massa pode ser alterada por meio da educação. É preciso explicar para a comunidade quais as possibilidades, o que é factível e o que pode ser melhorado, disse o juiz em palestra sobre o sistema carcerário, na sede do Ministério Público Federal em São Paulo (MPF/SP).
Também participou do evento o subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia, coordenador da Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional. Para ele, o sistema carcerário no país “é caótico” por uma série de fatores, provocados pelo fenômeno da superlotação. De acordo com ele, parte do sistema prisional está dominado por facções criminosas, há carência de recursos e “até podemos falar na carência do Estado dentro do sistema prisional”. Com tudo isso, acrescentou, o presídio se afasta da função legal, que seria a ressocialização do preso, que “sai pior do que entrou, e isso se reflete nos índices de reincidência”.
Para Bonsaglia, as rebeliões que ocorreram este ano demonstram claramente o estado em que se encontra o sistema prisional do país. No seu entender, é preciso olhar com atenção o que aconteceu nos presídios de Manaus, Boa Vista e Natal, e o Estado deve investir o que for necessário no sistema prisional. Além do mais, acrescentou que a prisão deve ser reservada so a quem não pode ser concedida outra medida. “Temos decisões do Supremo reconhecendo a possibilidade de outros meios, que não a prisão, e é importante que os tribunais implementem essas medidas”, salientou.
O subprocurador acredita que só precisa estar no sistema prisional os autores de crimes graves, violentos ou de colarinho branco, que dizem respeito à corrupção ou desvios de dinheiro público, afetando programas sociais como os destinados à saúde.
Segundo ele, há uma inversão ocorrendo no país. As pessoas que deveriam realmente estar presas, como as que cometeram homicídios, estão soltas. Bonsaglia lembrou que cerca de 60 mil pessoas são mortas por ano em homicídios dolosos, e só 8% da autoria desses crimes é estabelecida. Existe, portanto, “grande impunidade com relação a crimes mais graves. Tem muita gente que deveria estar presa e está solta, cometendo crimes e atentando contra a vida. Por outro lado, há autores de pequenos delitos presos quando a jurisprudência do Supremo e a própria lei admitem medidas alternativas à prisão”.
São Paulo
Uma das estratégias em uso pelo governo paulista para evitar que rebeliões como as que ocorreram no Amazonas e em Roraima se repitam nos presídios paulistas é separar os presos por facções, conforme revelou o secretário de Administração Penitenciária de São Paulo, Lourival Gomes, no seminário.
“Em setembro de 2016 fomos informados de que havia acabado a paz entre o Comando Vermelho [CV, do Rio de Janeiro] e o Primeiro Comando da Capital [PCC, de São Paulo]. Quando acaba a paz, pensamos que poderia haver algo como um ignorar o outro, da relação se romper. Mas descobrimos que não era bem isso, haveria uma guerra entre os grupos inimigos. Precavendo que isso poderia chegar a São Paulo, procuramos, por meio do departamento de inteligência e dos diretores, levantar quantas facções opostas [ao PCC, que domina os presídios paulistas] tinha em São Paulo. Sabíamos que haveria uma grande guerra entre a Família do Norte, Comando Vermelho e outras facções que se juntaram contra o PCC”, falou ele.
A separação entre os presos de diversas facções no estado, segundo o secretário, foi bastante complicada. “O preso não diz a que facção pertence. Então, começamos a folhear prontuários para verificar a origem das pessoas, retirando todas os presos que nasceram no estado do Rio de Janeiro, que moraram lá ou tenham cumprido pena lá. Também vimos tatuagens que pudessem dizer respeito aos grupos antagônicos ao PCC. E, por último, o sotaque. De início foram 60 presos que saíram e que colocamos em um só presídio. Hoje estamos com cerca de 107”, afirmou o secretário, sem citar para quais presídios foram levados. A secretaria identificou, segundo ele, 104 membros do CV, um do Al Qaeda (de Rondônia), um do PGC (de Santa Catarina) e um da Família do Norte (do Rio Grande do Norte) presos em São Paulo.
Em entrevista ao deixar o seminário, o secretário disse que a separação foi suficiente para evitar que situações como as de Manaus, Boa Vista e Natal ocorram no estado paulista. “A posição que tenho, de ontem, é de que essa foi uma solução eficiente”, destacou.
Durante sua palestra, Gomes disse que seria preciso construir um presídio por mês no estado para acompanhar o número de pessoas que chegam ao sistema prisional. Atualmente, o estado abriga mais de 232 mil presos, distribuídos em 167 presídios.
Segundo ele, “o sistema prisional tem uma única chave, que é a chave de dentro da prisão. Ele não tem a chave da porta de entrada e nem a da saída. Quem regula a entrada dos presos é a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Ministério Público e o Poder Judiciário”. Gomes ressaltou que construir prisão é a última das soluções. A primeira delas, acredita, é a audiência de custódia, “ferramenta importante para evitar que entre um volume muito grande de pessoas presas. Ali [na custódia] se faz a separação de quem tem que ficar preso para responder ao processo e quem pode responder ao processo em liberdade”.
Para a porta de entrada, o secretário concorda que as penas alternativas, como as de prestação de serviços à comunidade, seriam uma saída para o grande número de presos. Já na “porta de saída”, ele acha que a solução está na maior agilidade do Judiciário. “Os julgamentos precisam ser rápidos. Isso não quer dizer que vai soltar todo mundo. Vai dizer que se está apreciando o caso de cada um”, salientou.
“Se todos esses mecanismos funcionassem bem, de maneira engrenada, não teria tanta inclusão de presos no sistema prisional e não haveria tanta necessidade de se construir prisões”, concluiu.