INTRODUÇÃO
O presente artigo trata de pesquisa acerca das fraudes constatadas no recebimento de valores oriundos do auxílio emergencial prestado pelo Governo Federal por intermédio da Lei nº. 13.982/2020 relativo à Pandemia do COVID-19.
Com o objetivo de democratizar e popularizar o acesso ao site Juristas, nesta ocasião o tema será tratado de forma objetiva e sem adentrar com profundidade aos temas filosóficos que estruturaram a pesquisa que foi objeto de artigo científico submetido ao II Encontro Virtual do CONPEDI 2020.
Para quem tiver interesse na pesquisa completa, ao final desta publicação disponibilizarei o link do trabalho.
COMO O ASSUNTO VEIO À TONA?
Verificou-se desde o início do Programa de Auxílio Emergencial que milhares de pessoas estavam recebendo indevidamente os valores repassados pelo Governo Federal, e pior, mesmo diante da publicização das fraudes por órgãos de controle externo da Administração Pública, com ampla e massiva divulgação pela mídia nacional, comprovou-se que não houve recuo e cessação das condutas ilícitas.
Mesmo havendo a ameaça de coerção pelas esferas administrativa e judicial, inclusive por intermédio do Direito Penal, demonstrando a necessidade de intervenção jurídica mais drástica e repressiva diante da natureza do bem jurídico tutelado (patrimônio público), comprovou-se que não houve a repercussão esperada do ordenamento ético-normativo no comportamento de uma significativa parcela de pessoas, notadamente de servidores públicos.
Isso é assustador!
AGRAVANTE: AS FRAUDES FORAM COMETIDAS DIANTE DE UM CENÁRIO DE CAOS SOCIAL
O estudo embrenhou-se em buscar os motivos que levam determinadas pessoas, sejam servidores públicos ou empresários, mesmo diante da latente crise de saúde global, ante o desnorteio institucional, os arroubos políticos e econômicos, a atuarem fora da curva da normalidade, ora denominado padrão de comportamento ético.
Percebe-se que as micro fraudes cometidas em desfavor do erário público, no caso do auxílio emergencial, inicialmente capituladas como crimes de estelionato, vão muito além quando se tem em destaque que os cadastros públicos são delegados aos milhares de Municípios brasileiros que, por intermédio de seus servidores municipais, alimentam o Sistema do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – CADIÚNICO.
Dados coletados neste estudo, muitos deles divulgados pelo próprio Governo Federal, demonstram que cadastros públicos podem ter sido fraudados para fins de recebimento de auxílios governamentais há muitos anos, como o “Bolsa Família”, “Minha Casa Minha Vida”, “Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI” e muitos outros, que somente vieram à tona após órgãos de controle externo da Administração Pública constatarem que milhares de servidores públicos estavam recebendo indevidamente o auxílio emergencial (BRASIL, 2020).
MUITO MAIS QUE ESTELIONATO
O crime de “estelionato coletivo” vociferado pela imprensa nacional pode transformar-se num tipo penal com consequências muito mais contundentes, transmutando-se em crimes cometidos por funcionários públicos em face da Administração Pública, consequentemente expondo uma chaga ética das instituições pátrias aflorada exatamente num momento de extrema comoção social e impactos severos na economia mundial.
OS DESVIOS MORAIS E ÉTICOS EM PLENA CRISE (PANDEMIA DO COVID-19)
O ponto de partida deste estudo é a Pandemia da Covid-19 que criou um cenário de caos mundial, não só no setor de saúde com a perda de milhares de vidas humanas, mas no sistema político e econômico de muitos estados e do próprio país.
No Brasil, além de todos os problemas comuns ocorridos em outros países, constatou-se o surgimento de um cenário perfeito para muitas fraudes e desvios de verbas públicas destinadas ao combate e à prevenção da referida doença.
De forma muito rápida e organizada, foram elucidados significativos prejuízos ao erário público na compra de equipamentos necessários para equipar UTIs, medicamentos e insumos hospitalares.
Verificou-se por meio de dados divulgados pela imprensa e por meio de órgãos de controle externo da Administração Pública, que fraudes em contratações públicas, muitas delas emergenciais e desvestidas de maiores formalidades, serviram de mote para desvios milionários, demonstrando que as instituições privadas conluiadas com agentes públicos, mesmo num momento de extrema fragilidade e isolamento social, conseguiram organizar-se suficientemente para cometer ilícitos de toda ordem.
DADOS SOBRE AS FRAUDES
Além de todos estes relatos públicos de fraudes praticados em sede de contratações públicas, de acordo com dados divulgados pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná (2020), somente neste Estado estima-se que 10.648 servidores públicos distribuídos em 385 Municípios paranaenses podem ter recebido auxílios prestados pelo governo fruto de alguma espécie de fraude, cujos valores ultrapassam R$7 milhões na primeira fase do auxílio emergencial.
Os dados coletados por meio de informativos de órgãos públicos relatam que pessoas, de forma consciente e voluntária, prestaram declarações através do sistema disponibilizado pelo Governo Federal, autodeclarando-se sem vínculos empregatícios, indicando falsamente que preenchiam os requisitos elencados na norma de regência ao tema para os fins de recebimento do auxílio emergencial.
Apesar de não ser o objetivo deste estudo, inicialmente aquelas pessoas que prestaram falsas informações cadastrais para receber indevidamente o auxílio emergencial disponibilizado pelo Governo Federal cometeram, em tese, o crime de estelionato, inclusive servidores públicos que assim também procederam.
O CADIÚNICO
Por outro lado, surge uma importante constatação nas informações prestadas por órgãos de controle externo da Administração Pública, no sentido de que muitas pessoas que receberam o auxílio emergencial não realizaram o processo de autodeclaração previsto no art. 2º., inciso VI, “c” da Lei nº. 13.982/2020, mas obtiveram êxito no saque do auxílio porque, de uma forma ou de outra, estavam previamente cadastradas no Sistema do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – CADIÚNICO (BRASIL, 2007).
Numa investigação objetiva acerca dos requisitos necessários à efetivação e à inclusão do nome de uma pessoa no CADIÚNICO, que visa a atender as pessoas em situação de miserabilidade ofertando um dos seus inúmeros programas de auxílio, é a limitação da renda per capita estipulada em R$500,00 ou que a renda familiar não ultrapasse R$3.000,00.
A INCLUSÃO DE NOMES DE SERVIDORES PÚBLICOS NO CADIÚNICO
Neste diapasão surge um fator ainda não explorado pelos órgãos controladores, notadamente em relação aos servidores públicos, pois, conforme verificado por intermédio dos dados publicizados sobre as fraudes, constatou-se que há inúmeros casos de pessoas que ocupam cargo públicos e possuem rendimentos que os excluiriam automaticamente do sistema CADIÚNICO; porém, mesmo sem terem efetuado um novo cadastro mediante autodeclaração de ausência de vínculo empregatício, acabaram recebendo o sobredito auxílio emergencial.
Deduz-se que a pré-existência de inclusão do nome de servidores públicos no CADIÚNICO pode significar que aquelas pessoas tiveram acesso ou tentaram acesso a outros programas de auxílio do Governo Federal, denotando-se a existência de fortes indícios de que elas podem estar fraudando há anos os programas de auxílio destinados a pessoas e famílias em estado de vulnerabilidade social e econômica.
E pior, como o Governo Federal delega às centenas de Municípios brasileiros a competência para triagem, cadastro e inclusão de seus munícipes num dos programas de auxílio social, como os programas denominados “Minha Casa Minha Vida”, “Bolsa Família”, “PETI” e assim por diante; fica evidente que os próprios órgãos públicos, por intermédio de seus prepostos, promovem a inclusão de nomes de outros servidores públicos nesses cadastros, sem que alcancem os requisitos necessários para tanto.
O CRIME – ART. 313-A DO CÓDIGO PENAL
Caso constatado no caso concreto que o servidor público foi cadastrado de forma ilegal e com o conhecimento da pessoa responsável pela manipulação desse sistema cadastral, vislumbrar-se-ia uma situação muito mais grave do ponto de vista criminal, pois, em tese, o crime previsto no artigo 313-A do Código Penal (BRASIL, 1940) melhor se amoldaria ao caso, ao invés do crime de estelionato como acima relatado.
Mostra-se importante a ilustração destes fatos para adentrar na discussão central deste estudo, pois as fraudes no recebimento do auxílio emergencial, pelo menos em parte, podem ter origem na atuação das instituições públicas, que tinham por obrigação controlar a lisura desses cadastros, colocando-se na dicção do Direito Penal, na pessoa dos seus agentes, na posição de garante.
A contextualização de casos práticos, ocorridos recentemente, demonstram que as violações ao ordenamento jurídico não representam apenas o atuar individual dos cidadãos que colocam-se contra o sistema ético vigente, mas originam-se, também, dentro das próprias instituições públicas.
A seguir, tratar-se-á deste desrespeito individual ao ordenamento jurídico, que se percebe não ser generalizado ao ponto da norma jurídica ser retirada do campo de aplicação prática (invalidade) – mas que causa, diante do número significativo de fraudes verificadas – um sensível abalo à própria estrutura ética coletiva, diante da coparticipação de instituições públicas na violação da norma vigente.
A NECESSIDADE DE EDIFICAÇÃO DE UM PADRÃO DE COMPORTAMENTO ÉTICO INSTITUCIONAL
O Brasil é pródigo em produzir maus exemplos do atuar antiético e criminoso na senda pública; porém, apesar dos inúmeros casos noticiados diariamente na mídia, não há grandes resultados no tocante à punição de agentes públicos por comportamentos ilícitos que ultrapassam o limite estrito da ética (norma), apesar de existir no Direito Administrativo sancionador mecanismos jurídicos capazes de valorar e engendrar punições até por violação ao princípio da moralidade, que estrutura um dos pilares da Administração Pública.
Conforme ilustrado neste estudo, mesmo em plena Pandemia mundial da Covid-19, num momento de fragilidade extrema das pessoas e das próprias instituições públicas e privadas, há lugar para sucessivas fraudes com o dinheiro público.
Ainda, surpreendentemente, emergem outras irregularidades que eram cometidas há muito tempo, passando a aflorar de forma preocupante que micro fraudes – se é que podem assim ser denominadas – quando analisadas num contexto global, afiguram-se por demais perniciosas à coletividade, como constatado nas fraudes ao auxílio emergencial.
Ficou demonstrado que as fraudes desnudadas recentemente por órgãos de controle externo da Administração Pública, acerca do recebimento indevido do auxílio emergencial prestado pelo Governo Federal através da Lei nº. 13.982/20, não partiram apenas de atos individuais de cidadãos que atuam à margem da lei, mas de situações precedentes, geradas pelas próprias instituições públicas, por seus prepostos, com o objetivo de fraudar dolosamente os dados do CADIÚNICO do Governo Federal, cujo atuar ilícito por estar estruturado em muitos interesses escusos, provavelmente até de índole político-eleitoral.
Em que pese o fato de a grande maioria da população brasileira comportar-se eticamente, cuja constatação demonstra que a coletividade amolda-se ao padrão ético-normativo imperante; ao revés, demonstrou-se que as instituições públicas e os servidores públicos que deveriam velar pela legalidade demonstram desapreço pela norma vigente.
Dados recentes informados pela Controladoria Geral da União e já referenciados neste trabalho demonstram que no mês de maio de 2020, 396.316 agentes públicos receberem o auxílio emergencial de forma indevida.
Estes dados divulgados pela Controladoria do União foram confrontados com outros dados fornecidos pelo mesmo órgão em data posterior (julho de 2020), que comprovam que as fraudes, ao invés de diminuírem com a publicização dos fatos, aumentaram significativamente, verificando-se que na etapa seguinte do programa de auxílio emergencial as fraudes somam aproximadamente um bilhão de reais e teriam sido destinadas a 680.564 (seiscentos e oitenta mil, quinhentos e sessenta e quatro) agentes públicos.
É crucial realçar que a Controladoria Geral da União destaca que podem existir casos em que o nome do agente público foi incluído na lista de forma automática ou por fraude de terceiros.
Ressalvadas essas situações, nota-se que, mesmo existindo no sistema jurídico nacional a possibilidade de punição, no caso dos servidores públicos, pelas esferas administrativa e judicial, inclusive criminal com forte conteúdo coercitivo – no sentido repressivo – a norma jurídica como corpo ético a ser respeitado não está exercendo seu papel fundamental para significativo número de pessoas.
CONCLUSÃO
Esta pesquisa iniciou-se genericamente fazendo cotejo acerca de frequentes crimes e fraudes de toda ordem que são verificados no Brasil, desde grandes desvios de dinheiro público, num sistema de corrupção enraizado nas instituições públicas, na sequência foram analisados os casos específicos de fraudes ao Auxílio Emergencial prestado pelo Governo Federal.
Verificou que, mesmo diante da publicização das fraudes por órgãos de controle externo da Administração Pública, com ampla e massiva divulgação pela mídia nacional, não houve recuo e cessação das condutas ilícitas.
Independentemente das perguntas e respostas que poderão ser elaboradas após a leitura deste breve estudo, é certo que ficou evidente a necessidade de construção de um padrão de comportamento ético-normativo institucional, num ambiente em que a boa-fé esteja situada no campo da objetividade como ponto de partida.
Neste sentido, é crucial citar Iara Guazzelli (2016, p. 7), quando afirma que:
“Para sermos morais, devemos construir estruturas sociais morais, formas coletivas de viver em sociedade cujo princípio seja a universalidade, isto é, a garantia do respeito dos direitos de todos os seres humanos”.
Talvez tudo isso passe pelo caminho de uma profunda modificação no sistema de representação democrática no Brasil, permitindo que cheguem às Casas Legislativas pessoas que possam pensar e elaborar leis que atendam o que David Hume afirma sobre o senso comum, com a finalidade de arraigar essas ideias às instituições públicas que se comportam na contramão do interesse coletivo e são utilizadas para atender interesses de cunho individual ou de grupos políticos.
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