Para STJ, livro didático que reproduziu poema de Cecília Meireles não violou direitos autorais

Data:

Cecília Meirelles
Créditos: Zolnierek / iStock

A 4a. Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso especial em que um herdeiro da poetisa Cecília Meireles alegava violação de direitos autorais por parte de uma editora, pelo fato de ter publicado em livro didático, sem autorização, a íntegra do poema “O lagarto medroso”. O texto integra Ou isto ou aquilo, livro infantil da poetisa publicado pela primeira vez no ano de 1964.

Na demanda judicial, o herdeiro alegou que a reprodução integral de obra literária depende de autorização expressa do autor ou de seus representantes legais, visto que, de acordo com a legislação, somente a citação de passagens de obras para fins de estudo é liberada, não constituindo violação de direito autoral.

Ele ainda destacou que o fato de o poema estar publicado em um livro não lhe retira o caráter de obra literária protegida pela legislação.

Em sua defesa, a editora ressaltou que o livro didático, destinado a estudantes da quarta série do ensino fundamental, foi elaborado por renomados professores, os quais – em conformidade com a Lei 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais) e mediante a adequada menção da fonte bibliográfica – se limitaram a utilizar para fins de estudo um único poema, e não a íntegra de alguma obra da poetisa Cecília Meireles.

A empresa destacou ainda que somente promove a publicação e a distribuição dos livros, cabendo aos respectivos autores a responsabilidade pelo conteúdo.

Só uma pass​agem

Em primeiro grau, o pedido do herdeiro foi julgado improcedente, sob a fundamentação de que a editora demonstrou o caráter eminentemente didático da publicação, sendo aplicável ao caso a norma prevista no artigo 46, inciso III, da Lei 9.610/1998.

A decisão de primeira instância foi mantida no Tribunal de Justiça do Rio Janeiro (TJRJ). Para o TJRJ, embora a transcrição do poema tenha sido completa, ele, isoladamente, é somente uma passagem da obra Ou isto ou aquilo, que seria, na verdade, o objeto da proteção legal invocada pelo autor da ação.

O Tribunal de Justiça fluminense entendeu também que a publicação teve a intenção de contribuir com os estudos dos alunos do ensino fundamental, além de ter divulgado a obra de Cecília Meireles.

Obra si​​ngular

Em seu voto, o relator do recurso no STJ, ministro Marco Buzzi, lembrou que o artigo 7ºcaput e inciso I, da Lei 9.610/1998 confere proteção às criações de espírito, traduzidas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, enquadrando-se na previsão legal os textos de obras literárias.

“Inegavelmente, a mencionada poesia se constitui em uma criação do espírito expressa em forma de poema – gênero textual dividido em estrofes e versos –, ou seja, é um texto de obra literária”, afirmou.

Contrariamente ao entendimento das instâncias de origem, Marco Buzzi ressaltou que o fato de ter sido publicado com outros textos da escritora não retira do poema sua qualificação de obra literária, pois tanto há a “obra literária singular (poema)” como a “obra literária global (livro)”.

Finalidade educa​​tiva

No entanto, o ministro destacou que, de fato, o caso não pode ser considerado violação de direito autoral, mesmo que tenha havido o uso integral do texto “O lagarto medroso”. Isso porque, além de o livro didático trazer a indicação do nome da autora e da obra de onde o poema foi retirado, ficou claro o objetivo educativo da publicação – requisito exigido para a exceção legal prevista no artigo 46 da Lei 9.610/1998.

O relator destacou também que a reprodução do poema no livro escolar “não inviabilizou, tampouco prejudicou, de qualquer forma, a exploração normal da obra reproduzida ou causou qualquer prejuízo aos legítimos interesses do detentor dos direitos autorais atinentes às obras literárias da escritora Cecília Meireles”.

“Tal como referido pelas instâncias precedentes, a transcrição proporcionou que a nova geração de jovens estudantes tomasse conhecimento não só do recurso literário (poema), mas também da renomada obra da célebre e finada poetisa, contribuindo para a difusão da informação e da cultura literária brasileira”, acrescentou Marco Buzzi.

Direito ​​​​​moral

Para o relator Marco Buzzi, a reprodução parcial do poema poderia ocasionar interpretações errôneas ou descontextualizadas – o que, além de prejudicar o estudo da obra pelos alunos, significaria atentado ao direito moral da autora, de acordo com o artigo 24, inciso IV, da Lei 9.610/1998.

Buzzi destacou, por fim, que cumprir as atividades propostas no livro didático em relação ao texto da poetisa “exige o estudo integral do poema”, para dele extrair “a análise ortográfica e semântica – procedimentos específicos para o ensino da língua portuguesa, mas também vislumbradas diversas outras análises interdisciplinares relacionadas à botânica, biologia, geografia e matemática”.

(Com informações do Superior Tribunal de Justiça – STJ)

Ementa

RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C PEDIDO CONDENATÓRIO – ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL EM RAZÃO DA PUBLICAÇÃO DA INTEGRALIDADE DO POEMA “O LAGARTO MEDROSO” DA ESCRITORA CECÍLIA MEIRELES NO BOJO DE LIVRO DIDÁTICO DESTINADO AO ENSINO FUNDAMENTAL – INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE REPUTARAM INOCORRENTE A APONTADA VIOLAÇÃO ANTE A INCIDÊNCIA AO CASO DA EXCEÇÃO LEGAL CONSTANTE DO ARTIGO 46, INCISO III, DA LEI Nº 9.610/98 – INSURGÊNCIA DO DEMANDANTE – RECLAMO DESPROVIDO.
Hipótese: Discussão afeta à aventada violação de direito autoral pela citação/reprodução, sem prévia autorização, da integralidade de um poema no bojo de determinado livro didático.
1.Incidência do óbice da Súmula 284/STF relativamente ao apontado malferimento do artigo 535 do CPC/73, ante a deficiência nas razões recursais dada a ausência de demonstração acerca da existência de defeito específico inerente ao acórdão embargado ensejador da alegada negativa de prestação jurisdicional.
2.As instâncias ordinárias compreenderam que o poema “O lagarto medroso” não seria em si considerado uma obra, visto que parte integrante do livro “Ou isto ou aquilo”, no qual a poetisa Cecília Meireles aglutinou diversos textos poéticos, motivo pelo qual a citação da integralidade desse elemento textual não ensejaria violação ao direito autoral, por constituir mera passagem de fração da obra literária maior (o livro).
2.1.Apesar do poema ser parte integrante do livro, goza de proteção autoral nos termos da legislação de regência, pois consoante disposto no artigo 7º, caput e inciso I da Lei 9.610/98, “são obras intelectuais protegidas as criações de espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível”, tais como os “textos de obras literárias”. A poesia se constitui em uma criação do espírito expressa em forma de poema (gênero textual dividido em estrofes e versos), ou seja, é um texto de obra literária e a circunstância de ter sido publicado conjuntamente com outros não desnatura a sua qualificação, haja vista ser viável a coexistência da obra literária singular (poema) e da obra literária global (livro).
2.2.A despeito disso, a inadequação classificatória expressa pelas instâncias ordinárias não enseja o acolhimento da apontada violação ao direito autoral, ainda que tenha havido a reprodução, na íntegra, do texto “O lagarto medroso”, porquanto além de ter sido indicado o nome do autor e a fonte bibliográfica, o legislador estabeleceu no artigo 46, inciso III da Lei 9.610/98, não constituir ofensa ao direito autoral a citação de “passagens de qualquer obra para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir”.
2.3.No caso, é incontroverso dos autos que o contexto de citação do poema no livro didático está revestido de padrões ligados à difusão educacional (ensino) e a “medida justificada para o fim a atingir”, constitui e exige o estudo integral do poema, dele extraindo a análise ortográfica e semântica, procedimentos específicos para o ensino da língua portuguesa, mas também vislumbradas diversas outras análises interdisciplinares relacionadas à botânica, biologia, geografia, matemática (quantidade de estrofes, versos, repetições de palavras e rimas) entre outros.
2.4.A citação apenas parcial de trechos/excertos/passagens da poesia certamente prejudicaria a compreensão da criação intelectual da célebre poetisa Cecília Meireles e poderia gerar uma deturpação semântica do escrito, o que causaria a violação da integridade da obra literária e, consequentemente, ocasionaria atentado ao direito moral do autor consoante previsto no artigo 24, inciso IV da Lei 9.610/98.
3.Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, desprovido.
(STJ – REsp 1450302/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 11/02/2020, DJe 14/02/2020)
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