Prática é típica do Direito Marítimo.
A 4ª Vara Cível da Comarca de Santos, em São Paulo, reconheceu a validade da cobrança à vista da sobre-estadia para a devolução de contêineres vazios depois do período de livre utilização.
A demanda judicial foi movida por uma empresa de importação e exportação em desfavor de uma transportadora de contêineres para que pudesse efetuar a devolução das unidades de carga, depois do período de livre utilização, sem que fosse necessário o pagamento da chamada sobre-estadia (demurrage).
Na decisão, o juiz de direito Frederico dos Santos Messias disse que a cobrança da sobre-estadia está amparada pelo acordo firmado entre as partes e pelo artigo 331 do Código Civil (CC), ressaltando que se trata de instituto inerente ao Direito Marítimo “presente em qualquer contrato desta natureza”. “Impende registrar, ainda, que a mencionada cobrança pelo uso além do tempo pactuado é devida ainda que não prevista contratualmente”, frisou.
Ademais, o magistrado afastou a tese de uso de meio forçado de cobrança por parte do credor e afirmou que o demandante fez uso da ação judicial para se eximir do cumprimento de suas obrigações contratuais. “O devedor se vale do presente tipo de ação, exclusivamente, para, a partir da devolução do container, sem o pagamento da sobre-estadia, perpetuar a sua inadimplência, valendo-se também de mecanismos de blindagem patrimonial.”
Cabe recurso da decisão.
Processo nº 1034196-73.2022.8.26.0562 – Sentença
(Com informações do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP)
Teor do ato:
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Frederico dos Santos Messias Vistos. Trata-se de Ação de Obrigação de fazer cumulada com Declaratória de Inexigibilidade de Débito e, ainda, Reparação de Danos em que a parte autora aduz, em síntese, que celebrou contrato de transporte marítimo com a ré. Diz que, após o transporte, ultrapassou o período livre (free time) de utilização dos containeres, ensejando a incidência de sobre-estadia (demurrage). Todavia, ao tentar efetuar a devolução dos containeres vazios, a ré teria condicionado o ato ao pagamento antecipado da sobre-estadia, o que configura, em seu entender, conduta ilícita. Diz, ainda, que a conduta da requerida atrasou mais ainda a devolução dos containeres vazios, o que ensejou a incidência de mais sobre-estadia e de outras despesas decorrentes de armazenagem e manutenção dos containeres. Pede que a ré seja obrigada a aceitar a devolução dos containeres vazios, independentemente do pagamento antecipado da sobre-estadia. Pede, também, a declaração de inexigibilidade da sobre-estadia incidente após a data especificada na inicial e o ressarcimento dos valores gastos com armazenagem e manutenção das unidades de carga. A tutela provisória de urgência antecipada foi indeferida. Regularmente citada, a ré ofereceu contestação e reconvenção sustentando, em breves linhas, matéria preliminar e, no mérito, a legalidade da conduta, pois se trata de cobrança à vista da sobre-estadia que encontra previsão legal e contratual. Sustenta, também, que a cobrança à vista não se confunde com a cobrança antecipada, pois a sobre-estadia incide de forma automática a partir do encerramento do período livre (free time) e, por consequência, o vencimento da obrigação. Em reconvenção, a ré reconvinte pleiteia a condenação ao pagamento da sobre-estadia devida até a efetiva entrega das unidades de carga. Houve Réplica e Contestação à Reconvenção. É a síntese necessária. FUNDAMENTO E DECIDO. O processo comporta julgamento imediato nos termos do que prescreve o artigo 355, inciso I, do Código de Processo Civil. Não é pelo trâmite do processo que se caracteriza o julgamento antecipado. Nem por ser a matéria exclusivamente de direito; ou, mesmo de fato e de direito; e até em razão da revelia. É a partir da análise da causa que o Juiz verifica o cabimento. Se devidamente instruída e dando-lhe condições para amoldar a situação do artigo 355 do CPC, é uma inutilidade deixa-lo para o final de dilação probatória inútil e despicienda (RT 624/95). Registre-se, também, que já decidiu o Supremo Tribunal Federal que a necessidade da produção de prova há que ficar evidenciada para que o julgamento antecipado da lide implique em cerceamento de defesa. A antecipação é legítima se os aspectos decisivos estão suficientemente líquidos para embasar o convencimento do magistrado (RE 101.171/8-SP). Passo direto para análise do mérito da ação, tendo em vista que o seu resultado beneficia a parte que arguiu a matéria preliminar (princípio da primazia do julgamento do mérito). Delimitação do objeto. A controvérsia posta nos autos está na possibilidade ou não da cobrança à vista da sobre-estadia e no alegado impedimento para devolução do container vazio, sem o pagamento do valor que extrapola o período livre. Inexistência de hipossuficiência. Inexiste, no caso, relação de consumo. Sequer há parte hipossuficiente que possa justificar a aplicação da chamada Teoria Finalista Mitigada reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça no CC 92.519/SP. Portanto, a relação jurídica existente entre as partes atrai o disposto nos artigos 421, § Único, e 421-A, incisos II e III, ambos do Código Civil. Isso significa que, estando as partes cientes dos riscos alocados no negócio, habituadas que estão com a espécie de obrigação empresarial assumida, ao Estado impõe-se o dever de intervenção apenas excepcional. Não há, na hipótese dos autos, qualquer situação excepcional que justifique a intervenção judicial na relação jurídica. Possibilidade de cobrança à vista da sobre-estadia. Não há qualquer cobrança antecipada de sobre-estadia, na medida em que a obrigação de pagar passou a existir imediatamente após a superação do prazo livre, contratualmente ajustado entre as partes. A cobrança à vista da sobre-estadia está fundada na lei e no contrato. A cobrança à vista está amparada pelo artigo 331 do Código Civil, que assim dispõe: Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente. Está, também, ampara no contrato de transporte celebrado entre as partes. Ademais, a mera insatisfação com a forma de cobrança da sobre-estadia não afasta a mora, que permanece até a efetiva devolução dos containeres. Dessa forma, é incorreto afirmar que houve cobrança antecipada da sobre-estadia, houve tão somente cobrança à vista, em consonância com o que fora acordado pelas partes no momento da contratação do transporte e com o artigo 331 do Código Civil. Estando a autora amparada na lei e no contrato, não há que se falar em recusa injustificada no recebimento dos containeres, no que é devida a sobre-estadia após o decurso do período livre (free time) até a data da efetiva devolução das unidades de carga, pois não se cogita de afastamento da mora. Da alegada autotutela. Nem se pretenda argumentar com a tese de que se trata de meio forçado de cobrança implementado pelo credor (autotutela). Isso porque se coloca o fato descrito propositadamente travestido com essa natureza, porém não é disso que se trata, como exposto. Em primeiro, porque o que se tem nos autos é a cobrança à vista a partir do regular vencimento da obrigação. Em segundo, porque, do que consta dos autos, o que se tem é singela necessidade de agendamento do pagamento, no que, estando o devedor de boa-fé, não há razão para que não o faça. Ainda que assim não fosse, apenas para argumentar, a autotutela não é instituto desconhecido no direito brasileiro. Veja-se os seguintes casos tratados no Código Civil: legítima defesa e o estado de necessidade (Código Civil, art. 188), legítima defesa e desforço imediato na proteção possessória (Código Civil, art. 1.210, § 1º), autotutela de urgência nas obrigações de fazer ou não fazer (Código Civil, art. 249 § único e art. 251, § único), direito de retenção de bens (Código Civil, arts. 578, 644, 1.219, 1.433, II, 1.434), entre outros. E, na hipótese especial da autotutela decorrente do direito de retenção de bens, inexiste diferença na razão jurídica que inspira o instituto com a situação de fato descrita nos autos. A retenção, nos termos da lei civil, existe como foram de garantia do pagamento da obrigação assumida. O fato de não haver previsão específica para a situação dos autos se justifica porquanto a norma é repetição de anterior previsão já contida no Código Civil de 1916, quando não se concebia o transporte marítimo de carga com a pujança dos dias de hoje, muito menos se imaginava no uso desvirtuado da ação judicial como meio de garantia da inadimplência. Boa-Fé Objetiva e Abuso do Direito de Ação. Nesse ponto, digo que, no cenário ideal das relações empresariais, sequer haveria de se cogitar de ação judicial para imposição de obrigações contratuais regularmente assumidas. O devedor, acredita-se, não contrai obrigação para descumprir. Nem tudo são flores! Nas relações contratuais, assume hoje papel de destaque como vetor de conduta a boa-fé objetiva do artigo 422, do Código Civil e a teoria do abuso do direito, do artigo 187, do mesmo Código Civil. Sobre a teoria do abuso do direito, Flávio Tartuce, ao falar sobre a responsabilidade civil, afirma que … a construção, atualmente, tem duas pilastras, estando aqui a principal alteração estrutural da matéria de antijuridicidade civil no estudo comparativo das codificações brasileiras. Frise-se que a modificação também atinge a responsabilidade contratual, pois o art. 187 do CC/2002 também pode e deve ser aplicado em sede autonomia privada… (Manual de Direito Civil, Flávio Tartuce, p. 517, Editora Método). Sem destaque no original. Os conceitos de boa-fé-objetiva e abuso do direito estão intimamente relacionados, bastando para tanto observar a menção expressa que faz da boa-fé o disposto no artigo 187, do Código Civil. Rubens Limongi França conceitua o abuso do direito como sendo um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito (Enciclopédia Saraiva de Direito, p. 45, Ed. Saraiva). É o ato lícito no objeto, mas ilícito por seu modo de execução. No cotidiano forense, assiste-se a perpetuação da inadimplência das obrigações, no mais das vezes, valendo-se o devedor de ações judiciais habilmente manejadas para esse fim, colocando ele, devedor, na posição de soberano no reino da inadimplência, restando ao credor ser mero súdito. Os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso do direito, inclusive o de ação, devem ser conjugados para obstar tal modo de agir. No que ordinariamente acontece, a partir da análise empírica dos fatos, o devedor se vale do presente tipo de ação, exclusivamente, para, a partir da devolução do container, sem o pagamento da sobre-estadia, perpetuar a sua inadimplência, valendo-se também de mecanismos de blindagem patrimonial. A ação judicial está à serviço do não cumprimento da obrigação. É preciso, portanto, um novo olhar a partir da ideia de boa-fé objetiva, reveladora de standards positivos de conduta na relação contratual (antes, durante e depois), bem como, a partir da vedação ao exercício abusivo do direito de ação com o fim de perpetuar a inadimplência, em evidente desvio de finalidade da previsão constitucional do artigo 5º, inciso XXXV, da CF. Reconvenção. Afasto a matéria preliminar, na medida em que é perfeitamente cabível a Reconvenção para fins de cobrança do valor da sobre-estadia, porquanto fundada no mesmo fato (contrato de transporte). Não se pode olvidar que os contratos de transporte marítimo ostentam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados, dado o caráter consuetudinário inerente ao Direito Marítimo. Dentre estes institutos encontram-se o salvamento, a avaria comum, o fretamento, e, inclusive, a sobre-estadia, dentre outros. Nesse contexto, a sobre-estadia é instituto inerente ao Direito Marítimo, estando ínsito em qualquer contrato desta natureza em razão dos usos e costumes do mar vivenciados ao longo dos anos. Impende registrar, ainda, que a mencionada cobrança pelo uso além do tempo pactuado (ou sobre-estadia) é devida ainda que não prevista contratualmente. O período gratuito ou free time exige que os containeres sejam entregues limpos e com as mesmas condições de quando recebidos. Inviável a pretensão em reconhecer o free time apenas com o transporte terrestre, pois que há de ser compreendido como sendo todo o período em que a unidade de carga fica à disposição. Nesse sentido: “TRANSPORTE MARÍTIMO – TAXA DE SOBRESTADIA DE CONTAINERES – DEMURRAGE-NATUREZA JURÍDICA – Reconhecido que a demurrage não é cláusula penal, mas sim indenização por descumprimento contratual, a fim de compensar o proprietário dos containeres por eventuais prejuízos sofridos em razão da retenção indevida destes pelo devedor, por prazo superior ao contratado, independentemente da culpa do devedor no atraso, bastando sua ocorrência Apelo provido” (Apelação Com Revisão 7086181500, Rel Salles Vieira, 24a Câmara de Direito Privado, dj 08/03/2007, TJSP). “TRANSPORTE MARÍTIMO – TAXA DE SOBRESTADIA DE CONTAINERES – DEMURRAGE- Comprovado documentalmente que a ré permaneceu com os containeres por prazo maior do que o contratado Inadimplemento contratual caracterizado que faz incidir a demurrage. Cobrança procedente Apelo provido” (apud, apelação 7 215 338-3, 21a Cam Direito Privado, TJSP). Não há qualquer relação de dependência entre o valor da cobrança pelos dias de sobre-estadia e o valor da obrigação principal, tendo em vista que não se está diante de cláusula penal. A sua natureza é indenizatória e independe da prova prévia de qualquer prejuízo, no caso, presumido. A burocracia dos portos brasileiros, greves, eventual aplicação de penalidade administrativa ou até mesmo o perdimento das mercadorias importadas são situações previsíveis e próprias das atividades marítimas, portuárias e aduaneiras, não sendo causa suficiente para elidir a responsabilidade pelo pagamento da sobre-estadia. Trata-se de fortuito interno. Nesse sentido: AÇÃO DE COBRANÇA – SOBREESTADIA (“DEMURRAGE”). – Cobrança de sobreestadia – Indenização pelo uso do container fora do prazo estabelecido de isenção de pagamento – Relação Comercial – Inaplicabilidade do CDC – Pagamento de sobreestadia devido – A greve dos Auditores da Receita Federal, sendo fato notório e previsível, afasta a alegação de caso fortuito ou força maior – Direito à cobrança de sobreestadia Sentença reformada – RECURSO PROVIDO. (TJSP Apelação 0008590-17.2009.8.26.0562, 23ª Câmara de Direito Privado, rel. Sérgio Shimura, j. 26/06/2013). Não há impugnação aos valores das diárias ou mesmo quanto ao termo inicial da cobrança. Analiso o pacto em moeda estrangeira. Não há qualquer nulidade na celebração de contrato vinculado a moeda estrangeira, notadamente quando se trata de obrigação de natureza internacional. O direito deve acompanhar a evolução do comércio mundial para afastar antigas restrições prejudiciais ao livre trânsito de cargas pelo mundo. Apenas há que se ressalvar que, para contratos cujo cumprimento se escolha o território nacional, é indispensável que o pagamento seja feito em moeda corrente, buscando-se socorro, para tanto, no instituto da conversão. Analiso a conversão da moeda estrangeira. A conversão da moeda estrangeira deverá ser feita quando da devolução dos containeres, ou seja, da data em que o valor referente à sobre-estadia deve ser pago, e não a data da propositura da ação, de modo a não permitir a utilização da ação judicial com fim especulativo. Nesse sentido: “TRANSPORTE MARÍTIMO – TAXA DE SOBRESTADIA DE CONTAINERES – DEMURRAGE -CONDENAÇÃO EM MOEDA ESTRANGEIRA – Pretensão à conversão dos valores para moeda nacional na data do efetivo pagamento Inadmissibilidade A conversão do valor devido para moeda nacional deve ocorrer na data de devolução dos containeres, ou seja, na data em que o valor referente a sobreestadia destes deveria ter sido paga. Art. 1º do Decreto-Lei n° 857/69 Hipótese que evita eventual enriquecimento sem causa da autora, que poderia beneficiar-se da variação da moeda estrangeira para ajuizara ação quando o câmbio lhe estivesse mais favorável Ausência de prejuízo à parte, vez que a partir da data da conversão incidirá correção monetária, nos termos da Lei n° 6899/81 Cobrança parcialmente procedente Apelo improvido” (apud, apelação 7215338-3, 21ª Cam. Direito Privado, TJSP). “Ação de cobrança – Transporte marítimo – Container – Sobreestadia – Ocorrência – Dever de indenizar – Condenação em moeda estrangeira – Conversão do valor devido para moeda nacional da data da devolução dos containeres – Recurso provido em parte” (Apelação n° 7215338-3, Rel. Silveira Paulilo, 21ª Câmara de Direito Privado, dj 13 08 2008, TJSP). Destarte, correto se mostra a conversão da moeda estrangeira quando da entrega dos containeres, até mesmo porque é a partir daí que cessa os dias da sobre-estadia e qualquer vinculação com a moeda estrangeira. Não se pode olvidar ainda que somente adotando-se o critério aqui mencionado é que se evita a especulação financeira, até mesmo porque poderia o credor aproveitar-se do dia mais favorável da variação do câmbio da moeda para que com isso auferisse maior proveito econômico. Há incidência da correção monetária que ocorrerá desde a data da conversão até o efetivo pagamento, em consonância com a Tabela Prática do Tribunal de Justiça, e dos juros moratórios, à taxa legal, a contar da citação. Pelo exposto, com fundamento no artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil, JULGO IMPROCEDENTE o pedido principal e JULGO PROCEDENTE o pedido da Reconvenção para condenar a autora reconvinda ao pagamento dos valores devidos a título de sobre-estadia, convertendo-se a moeda estrangeira em nacional na data da efetiva devolução dos containeres, incidindo correção monetária desde a data da conversão até o efetivo pagamento, em consonância com a Tabela Prática do Tribunal de Justiça, e juros moratórios, à taxa legal, a contar da citação. A parte autora, sucumbente nas duas ações, arcará com as despesas do processo e com honorários advocatícios que arbitro em 10% sobre o valor atualizado da causa na ação principal (improcedente) e 10% sobre o valor total da condenação na reconvenção (procedente). PI. Advogados(s): Isis da Silva Souza (OAB 185654/SP), Marcelo de Lucena Sammarco (OAB 221253/SP)