É abusiva e discriminatória a dispensa do empregado que presta solidariedade a outra empregada vítima de assédio sexual. Com esse entendimento, a desembargadora Adriana Goulart de Sena Orsini deu razão a uma coordenadora de Recursos Humanos que contou ter sido dispensada injustamente de uma indústria mineira de metais e ligas, só porque tomou a defesa de uma colega que havia sido assediada sexualmente pelo chefe. “A dispensa por motivo discriminatório é vedada pelo ordenamento jurídico e como tal, deve ter seus efeitos neutralizados pelo Poder Judiciário, nos termos do art. 4º da Lei 9.029/95, cujo artigo 1º elenca, apenas de forma exemplificativa, e não exaustiva, hipóteses de discriminação”, fundamentou a desembargadora, cujo voto foi acompanhado pela maioria dos julgadores da 11ª Turma do TRT-MG. A ré foi condenada ao pagamento de multa e indenizações que podem totalizar 100 mil reais.
Para entender o caso
A coordenadora de RH alegou que, em meados de 2015, encontrou a colega de trabalho chorando e muito abatida. Ela contou que o superior hierárquico, gerente comercial, havia tocado inesperadamente seus seios, sob a blusa, enquanto atendia ao telefone. Constrangida, a própria vítima teria dito à reclamante que, caso denunciassem o fato ao diretor da empresa, certamente seriam demitidas. Mas os assédios continuaram e a reclamante acabou fazendo uma denúncia escrita ao diretor da empresa depois que o gerente agiu novamente, apalpando as nádegas da colega. Como coordenadora de Recursos Humanos, ela cobrou da diretoria uma atitude em relação ao assediador. Mas o diretor da empresa teria se negado a dar recibo da denúncia que lhe foi entregue. E, numa reunião a portas fechadas da qual participaram a reclamante e a vítima dos assédios, elas teriam ouvido desse mesmo diretor a seguinte pérola: “cabe ao homem investir e à mulher aceitar ou não”. A partir daí, ambas passaram a ser tratadas de forma rigorosa, sendo dispensadas em agosto de 2015. Detalhe: a reclamante possuía garantia provisória no emprego, por ser membro da CIPA.
Para fazer provas de suas alegações, a coordenadora de RH apresentou gravação de vídeo em DVD, contendo as imagens do assédio sexual praticado contra a colega de trabalho, e uma testemunha. Como indício do caráter discriminatório da dispensa, ela apontou o fato de ter sido dispensada no período de estabilidade no emprego, prática jamais adotada antes na empresa, segundo informaram a preposta e a testemunha. A representante da ré também afirmou que a empresa investia na especialização da reclamante, não sendo usual a dispensa de trabalhadores nessa situação.
Voto divergente
Diante desse quadro, a desembargadora, que atuava como revisora do recurso, discordou da interpretação dada ao conjunto probatório pelo relator em seu voto, no sentido de que a prova produzida não teria sido suficiente para comprovar o caráter discriminatório da dispensa, ocorrida em meio a outras, em razão da crise econômica que se instalou no país. “Analisando os autos, me convenci, pelo depoimento da testemunha, de que a reclamante, de fato, somente foi dispensada, porquanto prestou solidariedade para sua sobrinha, vítima de assédio sexual dentro da empresa”, frisou a magistrada redatora do voto vencedor, acompanhada pela maioria da Turma julgadora.
“Ademais, a autora, com mais de 20 anos de contrato de trabalho, sem qualquer mácula em seus apontamentos profissionais, frequentando cursos de aperfeiçoamento, foi dispensada dentro do período de sua estabilidade provisória decorrente de cargo na CIPA, o que revela que tal dispensa ocorreu de forma desesperada e numa tentativa de abafar um fato que a lei imputa como crime. Ora, indubitável, pela máxima de experiência que esse anos de magistratura me trouxeram, que a probabilidade de uma empregada desse nível ser dispensada era mínima, considerando, inclusive, a garantia provisória de emprego que a ré precisou indenizar, sendo que ela própria confessou que jamais dispensou um empregado no curso de estabilidade”, fundamentou.
A desembargadora descartou o argumento de que as demissões da reclamante e de sua sobrinha teriam ocorrido no bojo de outras demissões em massa, provocadas pela crise, salientando que as demais demissões ocorridas no mês de agosto foram apenas de pessoas ligadas à produção, cujo emprego é sazonal. “Dessa forma, restou evidente que a dispensa da reclamante foi totalmente discriminatória, decorrente de um tratamento misógino, por parte daquele que deveria impor o respeito e preservar a dignidade no ambiente de trabalho, isto é, o próprio empregador. ”
Não à discriminação
Ao invocar a vasta legislação que trata da não discriminação em matéria de trabalho e emprego, a redatora destacou a convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que afasta do ambiente laboral qualquer ato que vise distinguir ou excluir um determinado empregado, destruindo ou alterando a igualdade de oportunidade e tratamento por motivo injustamente desqualificante. “É nula a dispensa por motivo discriminatório, comportando a reintegração do empregado ou indenização substitutiva, nos termos dos artigos 1º, III e IV e 3º, I e IV da Constituição da República, das disposições da Convenção 111 da OIT, ratificada em 26.11.1965 (Decreto 62.150/68) e do artigo 4º da Lei 9.029/95”, constou no voto.
Desigualdade obsoleta – Reprovando a atitude da empresa, que não tomou qualquer providência em relação ao assédio e ainda puniu com a dispensa a vítima e a denunciante do ato, a desembargadora observou que, “em pleno século XXI, as mulheres ainda precisem travar batalhas contra preconceitos e discriminação das quais são vítimas desde a origem da civilização”. E destacou ser essa ainda a realidade que a mulher precisa suportar e vencer diariamente dentro do mercado de trabalho. O voto cita dado da OIT, pelo qual as mulheres brasileiras ganham, em média, 22,1% a menos que os homens no país. Em certas categorias de profissões intelectuais e científicas, a diferença no pagamento pode chegar a 40% em favor dos homens. “Diante desse cenário, em que a mulher precisa se impor para conseguir ao menos um tratamento igualitário, torna-se plenamente compreensível que elas se unam quando injustiças ou quando quaisquer tratamentos que as coisifique ou reduza sua importância ocorram”, pontuou e finalizou, citando a famosa composição de Milton Nascimento e Fernando Brant, em referência a todas as mulheres: “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre, quem traz no corpo a marca Maria, Maria…”
Direito comparado
Por fim, a desembargadora aplicou ao caso, por analogia, uma regra prevista no artigo 25 do Código de Trabalho de Portugal, na falta de norma expressa no direito brasileiro (permissão contida no artigo 8º da CLT), pela qual o ônus da prova da dispensa discriminatória, indicado o trabalhador e o fator de discriminação, recai sobre o empregador, por força da regra de reforço da operacionalidade do princípio da não discriminação: “Cabe a quem alega discriminação indicar o trabalhador ou trabalhadores em relação a quem se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer factor de discriminação” (Art. 25 do CTP).
Condenação
Por maioria, os julgadores da 11ª Turma do TRT-MG acompanharam esse entendimento e condenaram o ex-empregador a pagar à trabalhadora indenização de R$15 mil, bem como o dobro da remuneração do período de afastamento e ainda uma multa administrativa no valor de R$47.301,10, além de custas processuais. O valor arbitrado à causa foi de R$100 mil.
Consta no andamento desse processo a interposição de Recurso de Revista ao TST.
PJe: Processo nº 0010605-06.2016.5.03.0076 (RO)