Para que possamos discorrer sobre a tributação ou não do Imposto sobre Operações relativas à circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação face energia elétrica contratada, precisamos entender sobre sua natureza jurídica.
O Imposto sobre Operações relativas à circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte interestadual, é mais conhecido pela sua sigla ICMS e tem previsão constitucional, a qual possui previsão quanto a não cumulatividade, bem como a seletividade em razão da essencialidade da mercadoria ou do serviço.
Este é um tributo de natureza fiscal e extrafiscal, vez que constitui importante fonte de Receita governamental para os Estados e Distrito Federal, conforme art. 155, II, in verbis:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (…)
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
(…)
3º À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.”
É de conhecimento de que a Constituição Federal não cria tributos, ela distribui competências, por este fato o ICMS é disciplinado pela Lei Complementar 87/96, também conhecida como Lei Kandir. Embora seja uma lei antiga, no decorrer do tempo ela teve várias modificações realizadas por leis complementares.
Sua incidência diz respeito a circulação de mercadorias, todavia a compreensão de circulação de mercadorias demonstra-se vaga pelo legislador constituinte, vez que a circulação de mercarias podem se dar de em várias hipóteses.
Visando dirimir estes constantes problemas, estudiosos e doutrinadores jurídicos, iniciaram a busca para tentar concretizar o que seria a circulação que pertinente para o contexto tributário no momento da subsunção a hipótese de incidência prevista em lei.
Desta forma, entende-se hoje que a hipótese de incidência do tributo é a circulação de mercadoria ou prestação de serviços interestaduais ou intermunicipais de transportes e de comunicação, mesmo que tenham se iniciado no exterior, contudo seu fato gerador se dá com a saída da mercadoria ou o início da prestação do serviço.
O entendimento majoritário é de que se considera realizada a operação efetivamente, quando há a saída da mercadoria do estabelecimento comercial fornecedor para o consumidor final, desta forma, finalizando a cadeia econômica bem como a transferência de propriedade, e assim, ocorrendo o fato gerador do ICMS.
Destarte, chegamos ao consenso que apenas haverá a incidência do tributo quando houver a troca de titular da mercadoria, serviço ou insumo. Sem a troca de titulares consideramos apenas como circulação comum, sem tributação.
Até porque não seria inteligente da parte do legislador tributar todo e qualquer tipo de circulação de mercadorias, vez que haveria um aumento excessivo nos encargos tributários para os empreendedores, inviabilizando o trabalho mercantil.
Visando restringir tributações, o legislador constituinte previu no art. 155, § 3º, que o ICMS também incidirá sobre a energia elétrica.
Ocorre que em meados de 2015, nova dúvida pairou sobre o Direito. Qual seria a natureza da energia elétrica para fins de tributação?
Realizando a interpretação deste artigo, os Tribunais reconheceram que a energia elétrica tem característica de mercadoria para fins de incidência do ICMS.
Se tem característica de mercadoria, poderíamos concluir em simples análise que para sua tributação, deveria haver a entrega dela.
Pode parecer simples, mas podemos segregar dois tipos de energia elétrica, a residencial e a por demanda ou contratada.
A energia elétrica contratada ou por demanda é que aquela em que empresas ou indústrias de médio e grande porte que se encaixam no GRUPO A (alta tensão) fixam um valor, para entrega em kilowatts por empresa de fornecimento de energia elétrica visando minimizar seu custo com este insumo.
E foi sobre esta segunda que flutuava a incerteza sobre, em que momento haveria o fato gerador para a incidência do imposto.
Empresas e indústrias que possuem necessidade de alta demanda de energia elétrica, tem com praxe realizar estes contratos para fornecimento destas, o que torna mais vantajosa a operação, pois o valor poderá ser mais baixo do que se houvesse o pagamento mensal como as pessoas físicas fazem. Isso porque a maneira de tarifação não é realizada de maneira diferente.
O consumidor, detém o poder de negociação, contratando a quantidade de energia que estima utilizar, consequentemente reduzindo o custo de tarifação.
Acontece que algumas vezes o consumidor acaba não utilizando a quantidade total contratada, ou seja, naquele momento a demanda torna-se menor que a quantidade de kilowatts contratados para entrega.
Consequentemente a empresa não usufruiu do total da demanda contratada, e, portanto, não havendo entrega de uma parte do insumo.
Neste momento, quanto chegava a fatura para pagamento o ICMS incidia sobre o valor total do contrato, e não sobre o valor efetivamente entregue pela empresa fornecedora.
Frente a esta maneira de tributar, sobre o que poderia se entender que não se tratava de uma mercadoria entregue, que adveio a controvérsia.
Deve ou não o ICMS incidir sobre o valor contratado ou utilizado?
E sobre este fato o STF se posicionou recentemente, o qual vamos discorrer sobre ele.
Para auxiliar no entendimento do posicionamento do STF, traçamos alguns paralelos e devemos reaver alguns pontos discutimos neste texto, vejamos:
- Incide sobre a energia elétrica;
- Tem caráter não cumulativo;
- Tem como hipótese de incidência a circulação de mercadorias;
- Considera-se energia elétrica como sendo mercadoria; e
- Deve haver a transferência de propriedade para incidência do imposto.
Analisando por esta ótica, parece clara a conclusão de que o ICMS não pode ser cobrado pela simples celebração de contratos, pois sua natureza jurídica não prevê que haja incidência pela mera formalidade jurídica contratual.
A pura e simples contratação da energia elétrica por uma empresa ou indústria não se considera tráfego da mercadoria, ou seja, circulação, pois, verificamos que a incidência apenas surgirá com a troca de titularidade do produto, serviço ou insumo.
Ora, se de fato ainda não houve a concretização do negócio jurídico, que se dará entrega da demanda de energia contratada, sendo realizada em momento posterior, não há o que se falar em troca de titularidade, e por conseguinte a incidência do tributo.
Apesar disso, parece que no meio jurídico este fato não se encontrava consolidado, vários questionamentos por meio de recursos, foram levados a julgamento buscando posição tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto ao Supremo Tribunal Federal para que estes traçassem uma diretriz sobre o tema.
Com fundamentação trazida pelos julgadores, assentou-se na jurisprudência desde o julgamento do Recurso Especial de n.º 222.810/MG em relatoria do Ministro José Delgado, no sentido de que o ICMS não é um imposto que vá incidir sobre tráfico jurídico, não podendo ser cobrado, pela simples celebração de contratos por não incorrer na hipótese de incidência prevista pela legislação, segue julgado para apreciação:
“TRIBUTÁRIO. ICMS. ENERGIA ELÉTRICA. DEMANDA DE POTÊNCIA. NÃO INCIDÊNCIA SOBRE TARIFA CALCULADA COM BASE EM DEMANDA CONTRATADA E NÃO UTILIZADA. INCIDÊNCIA SOBRE TARIFA CALCULADA COM BASE NA DEMANDA DE POTÊNCIA ELÉTRICA EFETIVAMENTE UTILIZADA.
1.A jurisprudência assentada pelo STJ, a partir do julgamento do REsp 222.810/MG (1ª Turma, Min. José Delgado, DJ de 15.05.2000), é no sentido de que “o ICMS não é imposto incidente sobre tráfico jurídico, não sendo cobrado, por não haver incidência, pelo fato de celebração de contratos”, razão pela qual, no que se refere à contratação de demanda de potência elétrica, “a só formalização desse tipo de contrato de compra ou fornecimento futuro de energia elétrica não caracteriza circulação de mercadoria”. Afirma-se, assim, que “o ICMS deve incidir sobre o valor da energia elétrica efetivamente consumida, isto é, a que for entregue ao consumidor, a que tenha saído da linha de transmissão e entrado no estabelecimento da empresa”.
2.Na linha dessa jurisprudência, é certo que “não há hipótese de incidência do ICMS sobre o valor do contrato referente à garantia de demanda reservada de potência”. Todavia, nessa mesma linha jurisprudencial, também é certo afirmar, a contrario sensu, que há hipótese de incidência de ICMS sobre a demanda de potência elétrica efetivamente utilizada pelo consumidor.
3. Assim, para efeito de base de cálculo de ICMS (tributo cujo fato gerador supõe o efetivo consumo de energia), o valor da tarifa a ser levado em conta é o correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada no período de faturamento, como tal considerada a demanda medida, segundo os métodos de medição a que se refere o art. 2º, XII, da Resolução ANEEL 456/2000, independentemente de ser ela menor, igual ou maior que a demanda contratada. 4. No caso, o pedido deve ser acolhido em parte, para reconhecer indevida a incidência do ICMS sobre o valor correspondente à demanda de potência elétrica contratada mas não utilizada. 5. Recurso especial parcialmente provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/08.”
Por este límpido entendimento o Superior Tribunal de Justiça editou o enunciado de n.º 391 de 23/09/2009, buscando disciplinar a incidência deste tributo:
Súmula 391 – O ICMS incide sobre o valor da tarifa de energia elétrica correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada.
Todavia, na contramão do que se imaginava, de que esta Súmula finalizaria a discussão, a incerteza se manteve e esta fora direcionada ao STF por meio do Recurso Extraordinário de n.º 593.824 Santa Catarina.
Sob a presidência do Ministro Dias Tóffoli, de Relatoria do Ministro Edson Fachin, julgado em 27/04/2020, apreciou-se o tema 176 da repercussão geral, consolidando o entendimento e cessando a divergência.
Veio para alinhar que não se pode tributar se não houver a utilização efetiva da demanda.
Em análise do julgado afirma-se que a simples formalização da contratação mercantil, acima explanada, para fornecimento futuro de energia elétrica obviamente não corresponde à transmissão de titularidade de mercadoria.
Vale citar palavras de Roque Antonio Carrazza, que inclusive houve sua citação pelo Ministro Edson Fachin em seu voto, que faz a seguinte compreensão sobre a circulação de energia elétrica e o ICMS:
“Em suma, o ICMS pode alcançar, também, as operações relativas a energia elétrica. Noutros termos, a energia elétrica, para fins de tributação por via de ICMS, foi considerada, pela Constituição, uma mercadoria, o que, aliás, não é novidade em nosso direito positivo (CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 310).”
Portanto, para desencadear a tributação, é necessário que se tenha indiscutivelmente a circulação de mercadoria que envolva negócio jurídico oneroso e que se obtenha troca de titularidade de um alienante para um adquirente.
Em primeiro momento realiza-se a mera contratação desta, momento qual não se vislumbra fato gerador para que haja hipótese de incidência do tributo, conforme exaustivamente explanado neste artigo e consolidado em entendimento pelo Supremo Tribunal Federal, no mesmo sentido que pautado pelo Superior Tribunal de Justiça.
Resta claro, por consequência, que não há possibilidade de cobrança de imposto relativo ao ICMS se este não tiver sido utilizado pela empresa ou indústria que o contratou, pois a simples assinatura via contratual sem troca da titularidade não condiz com previsão constitucional para configurar hipótese de incidência e consequentemente fato gerador de cobrança de tributo.
Em razão da demora no julgamento dos recursos, muitas empresas acabaram realizando o pagamento, mesmo que indevidamente, sobre o valor total da demanda contratada, mesmo que não utilizada.
E por este fato, questiona-se, quem efetuou o pagamento terá direito a restituição?
Sim! Consoante artigo 165, caput do Código Tributário Nacional o contribuinte tem direito ao recebimento do valor pago indevidamente, vejamos:
Art. 165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos: (grifo nosso)
Mas para isso é preciso prestar atenção em algumas regras, dentre elas o prazo prescricional.
De maneira didática e objetiva, considerando como a prescrição sendo a extinção do direito, ou seja, a pessoa não poderá reclamar para a devolução do valor pago indevidamente se fora deste prazo.
O prazo prescricional é de 5 (cinco) anos conforme art. 174, caput, do Código Tributário Nacional, tendo seu início de contagem a partir do momento da constituição definitiva do crédito.
Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.
Vale lembrar que o ICMS é um tributo de lançamento por homologação, os tributos sujeitos a lançamento por homologação, são aqueles o qual a legislação imputa ao sujeito passivo a obrigação de fazer o cálculo do tributo e consequentemente seu recolhimento.
Ao passo que a autoridade administrativa, caso não haja necessidade de edição, irá por sua vez homologar a ação realizada pelo contribuinte.
A grosso modo, após essa homologação que iremos iniciar a contagem do prazo prescricional, pois neste momento, considera-se constituído definitivamente o crédito tributário.
Com o pleito da restituição do tributo em razão da cobrança indevida, o recebimento poderá ser inclusive realizado em forma de crédito tributário, trabalhando com a modalidade de compensação, entender pertinente, poderá requerer por meio de pecúnia, a qual seria paga por meio de precatório.
Isto posto, finalizamos o estudo para concluir que o ICMS sobre a energia elétrica contratada não somente é indevido se não correspondente ao valor utilizada, como também faz jus o contribuinte a restituição dos valores pagos indevidamente desde que dentro do prazo prescricional de 5 (cinco) anos a contar da data da homologação do tributo.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 12 de janeiro de 2020.
BRASIL. Lei Complementar 87/96. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp87.htm>. Acesso em: 12 de janeiro de 2020.
Brasil. Julgamentos STF. Disponível: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442185>. Acesso em 13 de janeiro de 2020.
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. São Paulo:Saraiva, 2013.