A controvérsia do direito ao esquecimento e o conflito entre o direito individual de ser esquecido e o direito coletivo de ser lembrado

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Direito ao Esquecimento - Google
Créditos: PhotoMIX Company / Pexels

A ciência jurídica é extensa e muitas vezes se depara com novos desafios, tendo que se reinventar e adequar às necessidades da sociedade. Constantemente o direito, como ciência, é colocado em xeque. Às vezes, se o órgão legislativo não consegue oferecer uma resposta à sociedade à tempo, cabe ao órgão judiciário apreciar a matéria. É garantia constitucional a inafastabilidade da jurisdição, consubstanciada à luz do artigo 5º, XXXV, segundo o qual a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Constituição esta, que possui um belo texto analítico que aborda diversos temas do Estado, do universo jurídico e vida social.

O texto constitucional e ordenamento jurídico são bombardeados frequentemente para solucionar os mais variados problemas.

Tema que recentemente ganhou destaque na mídia e na Corte Suprema, o direito ao esquecimento, possui uma intrigante análise. Determinada pessoa ou fato têm o direito de ser esquecido ou merece ser lembrado? A sistemática aqui coloca, novamente, frente a frente o direito individual em contraponto ao direito coletivo.

Em tempo não muito longínquos, caracterizado pela mídia impressa e longos arquivos físicos, determinados acontecimentos ou pessoas caíam no obscurantismo acabando por operar o direito ao esquecimento tácito com o passar dos anos. Hodiernamente, a internet é um banco de dados eterno onde não existe prescrição (Rover, 2019), fazendo com que acontecimentos estejam à voga frequentemente. O mundo e o espaço digital surgem como um armazenamento contínuo e inesgotável de dados, numa memória perene (Guilherme Magalhães Martins, 2021).

As repercussões ou a memória sobre tal situações assumem um caráter de perpetuidade. Mas, o que o direito a ver com isso? (Deve estar perguntando o inquieto leitor neste momento).

Pois bem, propõe-se análise um crime bárbaro, que possui ampla divulgação e comoção. Com o passar do tempo, a tendência era de esquecimento tanto do ato ilícito em si, tanto do autor, bem como da vítima. Com uma mídia cada vez mais atuante e o “banco de dados eterno” promovido por novos meios de comunicação, a repercussão pode ser perpétua.

Pode a mídia retratar tal crime eternamente? Há de se lembrar que no Brasil não se admite apenamento perpétuo nos termos do artigo 5º, inciso XLVII da Constituição da República, sendo direito do cidadão não sofrer permanentemente ou de modo indeterminado as repercussões normalmente negativas associadas a fatos do passado (Guilherme Magalhães Martins, 2021).

As repercussões podem não ser impostas em sentença condenatória, mas são atreladas e, indiretamente são consequências do fato criminoso e da condenação, não podendo o fardo do ilícito ser perpétuo. É garantido o direito de ressocializar, mas se as consequências e repercussões da condenação forem eternas, como recomeças? Cabe a discussão.

Mas direitos não são absolutos e devem ser interpretados à luz do ordenamento jurídico como um todo à luz da sua finalidade social. E se uma conduta ou fato for de interesse coletivo ou de contexto histórico? O que há de prevalecer? O direito da sociedade em ser informada? A colaboração entre gerações para que as futuras tenham preservada a memória? Ou o direito individual de não ser lembrado? Uma temática extremamente delicada que socorre ao direito e bate às portas do Poder Judiciário em tempos recentes e que merece abordagem constitucional.

Este assunto foi objeto de estudo da sexta jornada de direito civil da Justiça Federal, que aprovou o enunciado nº. 531 que estabelece que “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.

A justificativa para aprovação do enunciado se deu, pois:

Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados (VI Jornada de Direito Civil, enunciado n. 531).

Além da questão da perpetuidade da pena, consubstanciada nos reflexos que determinado ato pode causar (potencializado por novas tecnologias que proliferam a informação e dificultam o esquecimento) há de se registrar a dignidade da pessoa humana e o direito de não viver nos holofotes eternos da lembrança, embora a Constituição vede o anonimato. Este enunciado da VI jornada de direito civil da Justiça Federal, de 2013, valorizou a liberdade individual.

Mas, a depender do caso, não se pode apagar a história. Fatos irrelevante, por si só se apagam no tempo. Porém, fatos históricos e de contexto social merecem destaque e, ainda, divulgação. Aqui são convidados a entrar na discussão o direito de liberdade de imprensa e os direitos de informar e ser informado.

Não é possível apagar a história. A história estaria sujeita à prescrição? Além de pessoas e repercussões, a história merece ser esquecida e substituída por fatos mais recentes? Temos capacidade limitada de armazenamento? Questionamentos severos.

Emília Viotti da Costa (BRASIL, 2015) diz que: “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”. Deste ensinamento podemos concluir que um povo sem memória é um povo sem futuro.

Preservar a memória e os fatos históricos, faz com que cresçamos com os próprio erros. Retornando ao exemplo do crime bárbaro, que abala o país e gera uma enorme comoção, por maior que seja sua atrocidade, pode servir de alerta (no mínimo) para o futuro.

No julgamento do Recurso Extraordinário n. 1.010.606 (Brasil, 2021), a Suprema Corte apreciou a controvertida questão. O Relator do caso, Ministro Dias Toffoli frisou que “casos como o de Aída Curi, Ângela Diniz, Daniella Perez, Sandra Gomide, Eloá Pimentel, Marielle Franco e, mais recentemente, da juíza Viviane Vieira, entre tantos outros, não podem e não devem ser esquecidos”. Todos estes são casos de grave repercussão e ficam marcados na história. Por maior que seja a monstruosidade do caso, serve de aviso à nação, para tentar evita-los. O próprio Estado pode se organizar melhor, propor novas e eficazes políticas públicas e atos legislativos para inibir ações semelhantes. A nação que lembra o passado, aprende com os erros e potencializa os acerto para atingir um Estado melhor no futuro.

Neste mesmo julgamento, o Ministro Marco Aurélio destaca que não somente fatos positivos e memórias boas devem ser guardadas na história. De acordo com o decano da Corte Surema:

“O Brasil deve contar com memória. E em fatos positivos e negativos, não apenas o que agrade a sociedade. Não cabe em uma situação como essa simplesmente passar a borracha e partir para um verdadeiro obscurantismo, um retrocesso em termos de ares democráticos.”

Nesta decisão, Prevaleceram, de maneira preferencial, na visão majoritária do Supremo Tribunal Federal, os direitos à memória e à liberdade de informação e de expressão. A liberdade é a regra, e as exceções devem ser expressas (Guilherme Magalhães Martins, 2021).

A Ministra Carmen Lúcia ressaltou que “impor silêncio ou segredo de fato ou ato que pode ser de interesse público, seria um desaforo jurídico”. Destaca a eminente Ministra a faceta pública que cada caso pode atingir, priorizando que o interesse público deve prevalecer sobre o interesse particular. O Ministro Fux, nesta mesma linha, destaca que fatos que tenham interesse público e histórico não podem ter sua divulgação limitada”.

Pode, ainda, o esquecimento, ser contrário à ideia de Estado Democrático. Primeiro, que pode forçar o olvidamento de casos antidemocráticos que tanto a Constituição luta contra. Segundo que, a própria Constituição garante o direito de informar pautado numa imprensa livre (artigo 220 Constituição Federal), destacando, ainda, que é vedada a censura em nosso ordenamento constitucional.

Daniel Sarmento citado por Guilherme Martins (2021) destaca que são “evidentes os riscos de autoritarismo envolvidos na atribuição a agentes estatais – ainda que juízes – do poder de definirem o que pode e o que não pode ser lembrado pela sociedade”. Desta forma, “a imposição do esquecimento tem sido um instrumento de manipulação da memória coletiva de que se valem os regimes totalitários em favor de seus projetos de poder, em face da cultura censória” (Guilherme Magalhães Martins, 2021).

Assim, a egrégia Corte Suprema, firmou posicionamento em repercussão geral que:

“É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”.

É fundamental para o Estado Democrático o direito de lembrar e de informar, mas, repisa-se, direitos não são absolutos e devem ser interpretados em consonância com o ordenamento constitucional. Eventual abuso do direito de informar cabe direito de resposta e reparação moral.

Por fim, questiono que o que há de ser da história se ninguém a contar no futuro?

REFERÊNCIAS

BRASIL (2021), Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário, 1010606. Re. Min. Dias Toffoli. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5091603. Acesso: fev. 2021

BRASIL (2015), Universidade Federal do Piauí. 19 de Agosto: Dia do Historiador. Disponível em: https://www.ufpi.br/ultimas-noticias-ufpi/8949-19-de-agosto–dia-dohistoriador. Acesso: fev. 2021.

BRASIL (2013), VI Jornada de Direito Civil, [11-12 de março de 2013, Brasília]. — Brasília : Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2013.

MARTINS, Guilherme Magalhães. Direito ao esquecimento no STF: A tese da repercussão geral 786 e seus efeitos. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/340463/direito-ao-esquecimento-no-stf-repercussao-geral-786-e-seus-efeitos. Acesso: fev. 2021

RODAS, Sérgio. Direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição, decide STF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-11/direito-esquecimento-incompativel-constituicao-stf2. Acesso: fev. 2021.

ROVER, Tadeu. Direito ao esquecimento criou obrigações para veículos de comunicação. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-28/direito-esquecimento-criou-obrigacoes-meios-comunicacao#:~:text=Direito%20ao%20esquecimento%20criou%20obriga%C3%A7%C3%B5es%20para%20ve%C3%ADculos%20de%20comunica%C3%A7%C3%A3o&text=A%20internet%20%C3%A9%20uma%20biblioteca,futuro%20os%20erros%20do%20passado.&text=%22A%20tutela%20da%20dignidade%20da,%22%2C%20dizia%20o%20Enunciado%20531.. Acesso: fev. 2021.

Jefferson Prado Sifuentes
Jefferson Prado Sifuentes
Advogado, professor e Mestre em Direito Membro efetivo da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) Membro Regular da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional (ABDPC)

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